No Rock in Rio deste ano foi uma explosão de entusiasmo quando a banda Paralamas do Sucesso cantou a bela canção do Renato Russo, vocalista do Legião Urbana, Que país é este? O público do festival, literalmente, veio abaixo. Todos cantaram (ou gritaram) a plenos pulmões. Foi muito mais uma manifestação política, um grito de revolta contra o “estado de coisas” que vivemos, do que apenas uma manifestação de alegria. Afinal, que país é este?
Até que tínhamos algumas chances na década de 90, mais precisamente na segunda metade, depois do sucesso do Plano Real, da estabilização inflacionária e das boas práticas de política econômica adotadas. Realmente, foram importantes transformações nos marcos regulatórios, privatizações estratégicas (Vale, setores de telefonia e siderurgia e energia elétrica, Embraer), parte das reformas estruturais executadas, o que devolveu ao país, pelo menos por algum tempo, alguma normalidade econômica. A partir daí, tivemos uma severa crise energética, pega no contrapé do governo FHC e, em parte, motivada pela falta de planejamento, o que acabou resultando na derrota do candidato do governo nas eleições de 2002.
Eleito Lula da Silva, e embalado pela “Carta aos Brasileiros” e por uma política econômica extremamente pragmática, liderada por Antonio Palloci, o país surfou numa onda de prosperidade e de melhoria nos vários indicadores econômicos e sociais. Um fator decisivo, sem dúvida, foi a abundante liquidez mundial, dada a política monetária frouxa do Fed, a alta das commodiities no mercado internacional e o desenvolvimento econômico da China, em ritmo de crescimento acima de 10% ao ano. Até meados de 2008, desta vez sob a liderança do presidente do BACEN, Henrique Meirelles, conseguimos absorver as boas lições do Real, ganhar com a liquidez mundial favorável e adotar políticas acertadas. A crise do subprime, no entanto, começou a nos levar a caminhos tortuosos.
Várias foram as políticas anticíclicas adotadas a partir daí, o que acabou colocando a gestão fiscal em situação de total fragilidade. O superávit primário, em torno de 3,1% em 2011, veio numa crescente deterioração até fechar 2014 no negativo em torno de 0,6% do PIB. A inflação passou a transitar acima do teto da meta, 6,5%, e a taxa de câmbio, nesta semana passada, disparou, passando de R$ 4,00. Tivemos aqui, como marco inicial, a tola proposta da nova matriz macro, num esforço quase que insano em mostrar que a política econômica anterior era equivocada e que seria possível colocar o país num novo ciclo de crescimento, mais baseado em consumo, para depois focar em mais investimentos. Baseou-se em políticas de crédito, para incentivar o consumo, principalmente das camadas de baixa renda. Foi uma opção deliberada por abandonar o chamado tripé de política econômica, ancorada no câmbio flutuante, no sistema de metas de inflação e na gestão fiscal responsável. Tudo foi abandonado. Optou-se então por uma estratégia desenvolvimentista. Deu no que deu.
Na semana passada, num governo acéfalo, engolfado por uma crise de governabilidade sem fim e ajustes fiscais se arrastando no Congresso, a cotação da moeda norte-americana disparou, chegando a R$ 4,25 na quinta-feira passada (24/9), num claro sinal de descontrole e maior cotação da história do real, desde 1994. Foi um momento de irracionalidade dos agentes, para muitos, um ataque especulativo. Não parece.
O que ocorreu, isto sim, foi resultante da total perda de credibilidade deste governo, dados os movimentos desastrados na operacionalização da sua política econômica nos últimos anos. Numa queda de braço entre mercado e BACEN foram movimentos de fuga de um lado (para muitos, irracionais) e intervenções no mercado cambial do outro, no objetivo de reduzir a volatilidade do dólar, mas com poucos resultados práticos.
Várias foram (e vêm sendo) as tratativas do BACEN para reduzir esta onda depreciativa do real, como renovações de vencimento de contrato de swap, leilões de linha (com cláusula de recompra), leilões diários (ou rações), com vendas de contratos de swap no futuro, etc. Na semana passada, no entanto, o Presidente do BACEN, Alexandre Tombini, sinalizou que poderia usar as reservas cambiais nas vendas à vista. Isto acabou servindo para derrubar a cotação da moeda norte-americana, que de R$ 4,25 recuou a R$ 3,98 e assim permaneceu no último dia da semana.
[su_quote]O país vive uma crise de governabilidade e isto acaba se refletindo na volatilidade da taxa de câmbio[/su_quote]
Na verdade, o país vive uma crise de governabilidade e isto acaba se refletindo na volatilidade da taxa de câmbio. Em 1997 e 1998, por exemplo, dada a fragilidade das contas externas e a piora da crise cambial na Ásia e no Brasil, promessa de país emergente, sofremos sim ataques especulativos. Para Gustavo Franco, presidente do BACEN na época, “foi um evento cambial gerado pela motivação associada à política cambial e à crise externa”. Eram outros tempos, no entanto, com a âncora cambial como um importante instrumento de estabilização de preços relativos. Para Franco, “uma diferença crucial em relação ao período descrito nos anos 90 é que o que ocorre hoje é um haraquiri, um derretimento da moeda devido a políticas equivocadas dentro de casa. Não existe ataque especulativo contra a moeda, até porque o BACEN tem instrumentos poderosos que permitem controlar o câmbio”.
Franco acha que em relação à crise política que vivemos não tem jeito. “O BACEN não tem instrumento para tratar disso. São problemas ligados às políticas fiscal e partidária e, portanto, o BACEN só poderá fazer uma atuação tópica. Mas a pedra vai continuar rolando a ribanceira e a situação só vai mudar se houver mudança de ribanceira”. Ou seja, tem que haver troca de governo. Outros observadores acham que está em curso uma crise cambial, até porque não há sinais de que essa alta do dólar tenha alcançado seu pico. As reservas cambiais continuam preservadas, em torno de US$ 371 bilhões, mas até quando?
Crises cambiais, aliás, se manifestam de modo diferente quando os regimes cambiais são fixos ou flutuantes. Sendo regime fixo, a crise se manifesta com perda de reservas, utilizadas para defender a cotação da moeda estrangeira. Já no câmbio flutuante, esta crise se manifesta na variação da taxa de câmbio. Na visão de Fernando Cardim de Carvalho, professor da UFRJ, “esta é uma crise sui generis, já que a degradação da moeda local não resulta de um ataque especulativo”. Ataques clássicos acontecem quando um dealer estrangeiro (não-residente é um termo melhor, porque a nacionalidade não importa realmente) toma emprestado em moeda local para comprar moeda estrangeira à taxa de câmbio vigente esperando ganhar com uma desvalorização. Teoricamente não há ataque especulativo com câmbio flutuante. Também não há evidência, até agora, de saída de recursos, dado o que se sabe da saída efetiva de moeda estrangeira.
Segundo Cardim, aparentemente, o que há é em grande parte uma “fuga interna” para o dólar, seja de quem tem passivos em dólares e tem medo que não conseguir obtê-los a uma taxa razoável na hora de honrar pagamentos, seja de quem tem medo de que uma derrocada do governo leve consigo tudo para o abismo, grau de investimento, políticas fiscal e monetária, instituições, etc. Otaviano Canuto, diretor do FMI, por outro lado, acha que mesmo não sendo ataque especulativo, houve um princípio de pânico nos mercados na semana passada. “Foi um movimento exagerado, justificável, talvez, pelo clima de incertezas gerado pela incapacidade do governo de aprovar as medidas fiscais”.
Concordamos plenamente com todas as análises acima. Os movimentos exagerados do dólar são reflexos de um governo em total falta de sintonia com a realidade. Corremos o risco, isto sim, de perder uma bela obra construída no passado, o Plano Real. Parte dos seus alicerces talvez tenha concerto, mas quanto tempo será necessário? Muitos anos. Uma agenda pesada de reformas estruturais e um ajuste fiscal profundo talvez sejam um primeiro passo neste sentido.
Voltando a indagação inicial, Que país é este? Sabemos pouco, mas vamos avançando, ou tentando, entre idas e vindas, aos trancos e barrancos.
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