Estudioso das relações entre empresas e o setor público, Sérgio Lazzarini reconhece que é difícil blindar completamente o BNDES da ingerência política. A vulnerabilidade se evidencia na sucessão de fatos políticos envolvendo o banco nas últimas três semanas. Primeiro, a substituição de Maria Silvia Bastos Marques no comando da instituição. Depois, a reunião de governadores capturada para a agenda do presidente Michel Temer, com o que parecia ser uma promessa de boa vontade descabida do banco para com os estados. Por fim, a afirmação do empresário Joesley Batista de que Temer cobrou de Maria Silvia aval para a transferência da JBS para o exterior. Ph.D. em administração e professor da universidade Insper, Lazzarini acredita que impor a obrigatoriedade de os bancos estatais revelarem claramente quanto repassam em subsídios e mensurar os efeitos desses empréstimos ajudaria a proteger o BNDES.
Época – É possível livrar o BNDES da ingerência política, como quis fazer crer o governo Temer ao colocar Maria Silvia Bastos Marques no comando do banco?
Sérgio Lazzarini – A saída da Maria Silvia foi ruim. Ficou a dúvida: o que está por trás? Depois vieram o encontro com os governadores e a história da reunião. Objetivamente, sim, o banco está suscetível à mudança, de acordo com o bel-prazer do governo em exercício. Seria interessante haver uma lei ou norma, segundo a qual bancos públicos computassem o montante de recursos que a sociedade repassa a tomadores de empréstimo subsidiado e que o impacto disso fosse avaliado. Isso travaria mudanças de rumo repentinas e permitiria avaliar a efetividade dos empréstimos do banco. Na questão dos estados, alguns repasses já estavam contratados. Seria importante ter aproveitado o aporte para exigir alguma contrapartida, para não parecer somente uma barganha política para fortalecer a base de sustentação do presidente. Acabou restando uma conotação um pouco estranha e, pior, associada à troca de presidente [do banco].
Época – Abandonada a política de “campeões nacionais”, qual possível diretriz poderia tornar o banco menos suscetível à ingerência de agentes políticos?
Lazzarini – A diretriz tem de obedecer à busca do uso mais racional dos recursos e com mais impacto social. Não pode dar recurso só por dar. Não pode haver meta de desempenho dos funcionários baseada em desembolso, como foi até recentemente. Isso não casa com o que deve ser objetivo do banco. É uma mudança que a alta gestão precisa definir agora e o corpo técnico precisa introjetar.
Época – A política de criar empresas “campeãs nacionais”, em tese, dá mais brecha para ingerência política?
Lazzarini – Toda a ingerência política revelada não teria ocorrido se o banco não tivesse aberto a torneira do capital público, com critérios de enquadramento mais flexíveis. Não falo de critérios vistos pelos técnicos, de verificar se o tomador do empréstimo tem capacidade de pagamento e o resultado financeiro da empresa. Uma empresa maior, com mais caixas e ativos, que consegue passar no crivo do BNDES é a que menos precisa do capital do banco e será justamente a que terá maior capacidade de apoiar políticos. A falta de seletividade acabou atraindo grandes grupos que não precisavam do capital e também têm mais capacidade financeira de se conectar ao sistema político.
Época – Então a política de campeões nacionais favorece a corrupção?
Lazzarini – Favorece.
Época – Mas esse risco não existe com qualquer política, como alguma que favoreça o setor de infraestrutura?
Lazzarini – Mas, quando o governo diz “estou predisposto a apoiar grandes grupos”, eles pensam “quero ser o eleito”. E se articulam melhor para isso. Basta ver que as empresas que mais doaram para candidatos vencedores foram as que mais receberam recursos do BNDES. Isso é um paradoxo. O capital público tem custo elevado que poderia ser investido em outra área com impacto social.
Época – Apoiar privatizações não dá também margem para ingerência política e corrupção, como se suspeita ter ocorrido em leilões de estatais, como os do Sistema Telebras?
Lazzarini – Uma coisa é o corpo técnico poder ajudar no processo da privatização, dadas sua capacidade e experiência. Outra é fazer o que foi a prática da década de 1990: o banco entrar como sócio e emprestar dinheiro. Também são operações esquisitas. O objetivo ali devia ter sido buscar capital privado.
Época – Como estabelecer o que é papel legítimo de um governante eleito? Um presidente pode chamar o presidente do BNDES e pedir coisas?
Lazzarini – Em tese, o governo só pode mudar comandos de estatais se observados critérios técnicos, como diz a lei. Agora, bons governos mantêm suas equipes, dão norte, protegem, servem de anteparo à função corporativa.
Época – Qual é sua avaliação do período Maria Silvia?
Lazzarini – Começou a fazer um trabalho muito bom, de mudança na gestão. É perfeitamente possível que o banco continue a trajetória que ela estava imprimindo. Ela insistiu em devolver os R$ 100 bilhões [ao Tesouro Nacional]. Foi interessante. É uma estratégia e compromisso de emprestar mais seletivamente, porque fica com menos colchão de ativos, sinal importante de compromisso fiscal. Ela colocou mais critério em qual tipo de projeto receberia juro subsidiado. O banco também está implementando indicadores de efetividade. Tudo é um movimento. Infelizmente, ela não teve tempo de completar o trabalho.
Época – Ela sofreu muitas críticas dos funcionários.
Lazzarini – O BNDES tem um corpo técnico competente. Não acredito que haja corrupção. Mas talvez falte um alinhamento. O técnico do BNDES está perseguindo inadimplência baixa. É mais fácil analisar o risco de emprestar R$ 1 bilhão para uma grande empresa ou R$ 100 milhões para dez empreendedores menores? O ganho social fica de lado.
Época – Qual é sua avaliação de Paulo Rabello de Castro, novo presidente do BNDES?
Lazzarini – O mercado respeita, ele tem dado boas declarações, que vai continuar algumas mudanças da Maria Silvia, mas quero ver como ele vai proteger o corpo técnico.
Época – É bom o banco ter tantas participações em empresas e contar com os dividendos dessas ações? Isso ajuda a reforçar o caixa e emprestar mais?
Lazzarini – O BNDES não precisa só emprestar mais. O país precisa de projetos que deem retorno social. Saneamento básico, saúde, educação. Investir em uma rodovia privada que melhore o escoamento de grãos. Isso nem sempre atrai investimento privado, mas é necessário e dá retorno social.
Época – Quais outras fontes de recursos o banco deveria buscar?
Lazzarini – Mais importante é o banco ser criterioso no uso do dinheiro. O que o BNDES precisa fazer para gerar impacto? Para isso, não precisa de recursos monstruosos, mas, sim, entrar em áreas mais carentes, deficitárias de investimento. No segmento de grandes empresas, que corresponde a 60% dos recursos do banco, não se comprovou o impacto do investimento. É o caso de falar “não”. O empresariado vai chiar, mas seus problemas não devem ser resolvidos com subsídio.
Época – Em que outras mudanças de direção o banco deveria insistir?
Lazzarini – Precisamos sair da ótica do subsídio. O banco precisa reduzir seu papel de emprestador para ser mais garantidor, em que já atua, mas pouco. Não está faltando capital no mercado. O problema é o risco. O mercado privado cobra prêmio, em forma de juros maiores, para empresas que não conhece. Como o banco entra? A empresa submete o projeto, o banco privado ajuda a fazer a análise, o BNDES analisa também e toma decisão, dando garantia de parte do empréstimo. O banco entra só no momento em que o tomador do crédito não conseguir honrar. Mas ele não está emprestando.
Época – O BNDES deve atuar de forma contracíclica, fornecendo crédito ao mercado em momentos de forte contração, como na crise de 2008-2009?
Lazzarini – Nos momentos complicados, pode expandir o crédito. Fez bem naquele momento. Passado o pior da crise, deve parar. Mas o banco não parou, o que contribuiu para o grave problema fiscal que estamos tendo.
Fonte: “Época”, 23/06/2017.
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