Assistimos perplexos, nesta semana, à triste cena do incêndio e destruição parcial da catedral Notre-Dame, em Paris. A igreja, construída há cerca de 850 anos, é um dos patrimônios da humanidade, inspirou a literatura e leva legiões de turistas à capital francesa.
Ao ver a tragédia, lembrei-me de que ela foi cenário de inúmeros feitos da história mundial, seja na condição de ambiente principal dos eventos, como na coroação de Napoleão Bonaparte, seja como fundo de cena de guerras religiosas dos século 16, num país que se queria católico e leal ao papa, mas que não respeitava outras religiões cristãs.
Viu também a Revolução Francesa com seus ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, mas com o terror de Robespierre. Presenciou igualmente a Comuna de Paris com seus sonhos e pesadelos.
A catedral gótica ainda pôde contemplar duas guerras mundiais, inclusive as reuniões de 1919 que ocorreram após o armistício da Primeira e a invasão da cidade pelos alemães em 1940, na Segunda, com a consequente partição do país.
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Na verdade, cada monumento preservado é testemunha da história, do que se passou antes de nossa presença no planeta. Gerações nos precederam e outras nos sucederão, em um processo contínuo de criação, preservação e eventual destruição não só de monumentos, prédios ou ruas como de valores e tradições.
A consciência desse ciclo nos torna mais humanos e cuidadosos com o legado que nos é deixado pelos que vieram antes de nós e deveria nos levar a pensar no que deixaremos para os que ainda hão de vir. O futuro sempre se constrói em algum tipo de diálogo com o passado.
Podemos, por exemplo, glorificar os acontecimentos pretéritos, emprestando-lhes uma áurea de positividade que a história não confirma.
Muitos, por exemplo, lamentam a perda da excelente escola pública dos anos 1960, no Brasil, em que apenas 40% dos alunos frequentavam as aulas. Uma excelência obtida com a exclusão. Outros falam da sociedade mais virtuosa ou próxima de seus valores morais num século 19 que escravizava os negros.
Por outro lado, herdamos valores do passado e lhes ampliamos o significado. Foi um lento processo o de valorização da igualdade de todos perante a lei e, ao longo dos anos, associamos o conceito com a construção da proposta de igualdade de oportunidades, a ser oferecida primordialmente por educação de qualidade para todos.
O que não podemos é querer retornar ao passado perdendo os avanços que gerações passadas já nos asseguraram ou deixarmos de avançar frente ao legado positivo que recebemos. Os monumentos que nos observam não nos perdoariam. Retroceder jamais!
Fonte: “Folha de S. Paulo”, 19/04/2019