Logo mais, em São Paulo, será proibido fumar em qualquer local fechado de uso coletivo, público ou privado. A lei paulista, patrocinada por José Serra, bane fumódromos em restaurantes, bares, edifícios públicos e empresas privadas. Ela também confere compulsoriamente aos proprietários de estabelecimentos comerciais um poder de polícia, obrigando-os a fiscalizar a proibição. Entre os deveres dos empresários se inclui a oferta aos clientes de formulários de denúncia de episódios de violação da lei.
Nas democracias, o poder público administra as coisas. Mas a lei de Serra ambiciona administrar as almas, impondo a virtude e punindo o vício. Na sua intrusividade extremada, representa a culminância provisória de uma tendência perigosa. Há dois anos o governo federal tentou moldar os conteúdos da programação de TV por meio da chamada classificação indicativa, que daria ao Ministério da Justiça um poder de censura. Em maio, também em São Paulo, entrou em vigor uma lei proibindo o consumo de bebidas alcoólicas nas faculdades técnicas e escolas públicas e privadas do Estado, até mesmo por maiores de idade e em eventos alheios ao ano letivo, o que baniu o quentão e o vinho quente das festas juninas.
Serra ocupa um posto de vanguarda, mas não está só. Claudia Costin, a secretária municipal de Educação do Rio de Janeiro, determinou em junho o recolhimento de um livro didático de História que contém uma gravura quinhentista de Theodor de Bry. Costin julgou “inadequada” para alunos do quarto ano a figuração do empalamento ritual executado por índios tupis contra inimigos. O seu diagnóstico pessoal cancelou tanto a avaliação formal do MEC, que havia aprovado o livro, quanto a escolha dos professores que o selecionaram. A gravura condenada está exposta em museus visitados por crianças em atividades extracurriculares promovidas pelas escolas.
Leis e atos do poder público têm a função de proteger direitos. Mas Serra e Costin parecem enxergar o Estado como um pastor de almas: o pedagogo dos espíritos devotado a esculpir comportamentos culturais. Sob essa perspectiva, os cidadãos ocupam o lugar de pupilos ainda irresponsáveis, expostos à sedução do vício e carentes de uma autoridade virtuosa capaz de protegê-los de si mesmos.
Não há direito legítimo protegido pelas leis de Serra ou pelo ato de Costin. Numa sociedade que preza a liberdade, o direito dos não-fumantes ficaria preservado pela simples informação de que determinado bar ou restaurante se destina a fumantes. Uma solução mais restritiva é exigir a implantação de fumódromos confinados nos estabelecimentos que desejarem atrair o público fumante. Mas a proibição absoluta de Serra tem uma finalidade distinta: usar o poder de repressão para dissuadir os fumantes de fumar.
Já existem leis que proíbem a venda de bebidas alcoólicas para menores. O veto absoluto imposto por Serra atinge especificamente os direitos dos adultos nas festas juninas. Como Serra, Costin invoca o pretexto de proteger as crianças para ocultar a sua vontade de educar os educadores. O governador e a secretária imaginam-se missionários da virtude. Deviam abrir igrejas e disputar a conquista de almas num mercado competitivo, mas preferem fazer sua pregação com a persuasiva ajuda da polícia.
Há um impulso higienizador atrás dos atos normativos das duas autoridades. Segundo Serra, adultos que fumam e bebem socialmente não podem reivindicar seus próprios direitos, pois são mensageiros do mal. Se o governador pretende despoluir os corpos, a secretária almeja limpar as mentes, despojando-as de imagens impuras. A natureza territorial das normas que patrocinam tem um significado: eles traçam um círculo de giz em torno de espaços geográficos libertados do vício.
A busca do “homem novo”, o indivíduo virtuoso que encarna as qualidades de uma nação renascida, é um traço crucial dos totalitarismos do século 20. O “homem novo” de Benito Mussolini, um guerreiro infatigável sempre em uniforme militar, tinha como inimigo primordial não o judeu ou o estrangeiro, mas o espectro envolvente da degeneração física e mental. Mens sana in corpore sano – o princípio fundador da educação física e também do eugenismo foi invocado pelos mais diversos regimes totalitários em campanhas de reforma dos hábitos e comportamentos individuais. Serra não impôs exercícios físicos compulsórios antes do trabalho e Costin não mandou imprimir um livro oficial com imagens “adequadas”. Os atropelos às liberdades que promovem são insignificantes diante dos crimes monstruosos já cometidos em nome da virtude. Mas estão impregnados pelo mesmo conceito fulcral, que subordina a liberdade das pessoas a um projeto de eugenia coletiva.
O debate sobre a lei antitabagista é esclarecedor. Inicialmente, os defensores da interdição absoluta alegaram a proteção dos direitos dos não-fumantes, mas para sustentar a proibição de fumódromos confinados convocaram os argumentos que desvendam seu verdadeiro programa. O cigarro deve ser proibido por oferecer um mau exemplo. Os fumantes devem ser socialmente estigmatizados. O tabagismo deve ser coibido legalmente, pois as doenças que provoca geram custos para o sistema público de saúde. Friedrich Schallmayer, o fundador do movimento de higiene racial alemão, explicou em 1903 que “os insanos constituem uma enorme carga para o Estado”. Ele queria dizer que a “eficiência” da nação era reduzida pela existência daqueles doentes. O arcabouço ideológica da lei de Serra pode ser expresso como uma paráfrase do dístico de Schallmayer.
Serra e Costin talvez não ambicionem de fato criar o “homem novo” exemplar. Imagino que sejam movidos apenas por um cálculo político oportunista, amparado em sondagens de opinião pública. Mas isso não altera a mensagem contida nos seus atos. Distraídos, estão formulando uma tese sobre o Estado e o indivíduo.
(O Estado de SP – 09/07/2009)
Aprovo a lei pq acho um saco ter de respirar fumaça cancerígina alheia e outro saco ter de ficar pagando impostos para a Saúde gastar o que já quase não tem tratando pessoas com câncer de pulmão.
Simples assim.
PS* Meu pai morreu de câncer no pulmão depois de 10 anos de ter parado de fumar e ter colocado 4 pontes de safena e 2 infartos.
cancerígEna. Sorry.
O lamentável nessa história toda é que é preciso uma lei para se acabar com essa fumaceira desgraçada que impera nos locais públicos. Fossem os fumantes menos idiotas, menos arrogantes, menos EGOISTAS com o seu gerador de fedor portátil e nada disso seria necessário.
Apoio integralmente a idéia de que devam haver restrições em locais onde fumantes submetem não fumantes, contra a vontade destes, à fumaça do seu prazer nada saudável. Mas o artigo do Prof. Magnoli é, como de hábito, extremamente lúcido em destacar a mentalidade igualmente doentia que preside essas intervenções indevidas na liberdade individual. É a vocação missionária purificadora do “politicamente correto”. Infelizmente, a maioria das pessoas não percebe que o problema não é o fumo (hábito pouco defensável em si mesmo), mas a atribuição desse poder de interferência ao Estado. Há outras: em nome da salubridade, em vez de apenas orientar, tenta-se, por exemplo, proibir as crianças de adquirirem refrigerantes, doces e outros guloseimas nas cantinas. Ditadura tecnocrática alimentar? Vamos viver sobre uma nova inquisição, supostamente da saúde, que não se contenta em pregar a boa fé, mas pretende punir e interdidar os maus.
Não vou entrar na análise econômica para não alongar o comentário, mas o combate ao fumo por esse lado não se sustenta, principalmente em termos atuariais. O hábito do fumo deve ser desestimulado, é certo, pelas razões sobejamente conhecidas, mas não caçar fumantes como pervertidos morais.
E a fumaça dos automóveis, como é que fica? Tenho quase certeza que as doenças pulmonares de que são acometidas as pessoas não-fumantes provêm dos veículos automotores, e não dos fumantes.
Que governo eugênico adotaria alguma lei contra este tipo de poluição ambiental? Mas, claro, quem ousaria restringir a comodidade usufruída pela hipócrita sociedade?
Por que o Ministério da Saúde não adverte, na propaganda comercial, que BEBER PODE CAUSAR PREJUÍZOS À SAÚDE HUMANA, FÍSICA E MENTAL?
Alguém se habilita a me responder estas questões?
PURA HIPOCRISIA DE UMA SOCIEDADE IDIOTA, IMBECIL E EGOÍSTA!!!!!!!!!!
Só um lembrete: o fumante é o cidadão que mais paga imposto no Brasil…e o que tem menos direitos, aliás, não tem nenhum.