Cientista político com doutorado pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj) e professor licenciado do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (Ipol/UnB), Paulo Kramer participou, no dia 3 de maio, do “2º Fórum Democracia e Liberdade” na FAAP, em São Paulo.
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Em entrevista ao Instituto Millenium, Kramer comentou o tema do painel “O Brasil na encruzilhada – Qual modelo de pais queremos?, criticou o patrimonialismo, a infantilização da cidadania e o “aparelhamento do Estado” presentes no governo Dilma. Leia:
Instituto Millenium: O modelo de “capitalismo de Estado” é sustentável? Ele pode fortalecer o regime democrático?
Paulo Kramer: Nem a “coisa” nem o conceito que a define constituem novidades. No início do século passado, o jurista, historiador, economista e politólogo alemão Max Weber (1864-1920), em obras como “História econômica geral”, mapeou os avatares históricos do que chamava de “capitalismo politicamente orientado”: um sistema econômico que se perpetua e cresce graças às conexões privilegiadas de uma oligarquia empresarial com governantes, burocratas, enfim, os poderosos do dia. Considerações de incremento da produtividade, da competitividade e da qualidade dos bens produzidos ficavam em plano bastante secundário. O melhor exemplo é o mercantilismo praticado pelos modernos Estados nacionais absolutistas antes e até depois do advento da Revolução Industrial (o Portugal das dinastias de Aviz e Bragança e do marquês de Pombal; a Espanha dos reis católicos e de Felipe II; a França do ministro Colbert; e, aproximando o foco do nosso tempo, a Argentina de Perón e o Brasil de Vargas).
Produzir mais e melhor com menos e a menores preços (produtividade) para quê, se os “amigos do rei” contam com o privilégio de barreiras tarifárias e não-tarifárias para manter afastada a concorrência externa?
Os sistemas políticos que Hannah Arendt classificou como totalitários (Alemanha hitlerista; União Soviética de Lênin, Stalin e sucessores – eu incluiria ainda, até certo ponto, modelos autoritários como o fascismo italiano, o salazanismo português e a Espanha franquista) foram uma radicalização dessa tendência, com os empresários privados privilegiados substituídos por uma burguesia de Estado tecnoburocrática.
No caso brasileiro, sabemos como a história terminou: na hiperinflação dos anos 80, início dos anos 90, marcando o esgotamento do cinquentenário ciclo de política econômica de industrialização via estatização e “substituição de importações”(na realidade, neomercantilismo).
Hoje em dia, o show case mundial do capitalismo de Estado, claro, é a China, com sua diminuta elite comunista comandando com mão de ferro, as parcerias entre empresas estatais e investimentos privados domésticos e estrangeiros, lubrificadas por um suprimento inesgotável de mão-de-obra barata oriunda das regiões rurais, o que confere às exportações chinesas uma competitividade esmagadora pelo mundo afora.
Numa outra extremidade do espectro capitalista de Estado — fracassadas a ponto de beirar a caricatura –, encontram-se a mais que cinquentenário ditadura comunista cubana da família Castro e a semiditadura bolivariana de Hugo Chávez na Venezuela, na companhia de seus discípulos do Equador (Rafael Correa), da Bolívia (Evo Morales) e da Nicarágua (Daniel Ortega).
No caso do Brasil lulista, a melhor caracterização da atual etapa do capitalismo politicamente orientado pode ser encontrada nos últimos e polêmicos ensaios do cientista social e ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso: um novo bloco de poder formado pela simbiose entre a tecnocracia das grandes empresas estatais (tendo à frente gigantes como a Petrobras); grupos multibilionários nacionais (construção civil, agronegócio) e transnacionais (operadoras de telefonia) cevados nos generosos financiamentos do BNDES; e neopelegos sindicais no comando dos cofres da outra abundante fonte de recursos para os apaniguados do sistema representada pelos fundos de pensão daquelas mesmas estatais.
A maior aposta do bloco para se eternizar no comando econômico e político do país chama-se pré-sal, cujo novo marco regulatório, aprovado pelo Congresso Nacional no ano passado, reforça o controle estatal da exploração e comercialização dessas gigantescas reservas submarinas de petróleo e gás, bem como da repartição de suas rendas entre a cúpula federal e a classe política dos governos estaduais e municipais. (Não deixa de soar irônico que o fortalecimento da capacidade produtiva do país nessa área só foi tornada possível graças às oportunidades criadas pelo marco regulatório competitivo legado pelo governo FHC…)
No fundo, no fundo, o traço comum entre as múltiplas experiências nacionais do capitalismo político que esbocei acima pode ser compreendido com a ajuda de outro fundamental conceito da sociologia política weberiana: o conceito weberiano de “patrimonialismo”, sistema em que as fronteiras legais e morais entre o setor público e a esfera privada são muito fluidas, quando não inexistentes. Um convite permanente à corrupção, ao desperdício e ao agravamento das desigualdades socioeconômicas.
Se o patrimonialismo constitui ameaça à liberdade e à convivência democrática? Claro que sim, pois a substituição da variedade, da vitalidade, do espírito inovador característicos do dinamismo da economia de mercado pela ordem unida da economia de comando tende a ressecar as fontes de criatividade e flexibilidade não só nos negócios, mas também na vida social e cultural.
A alternativa a esse cenário desolador só pode ser encontrada na luta para promover e concretizar uma ordem liberal, com base em ideias como igualdade de todos os cidadãos perante a lei, igualdade de oportunidades (propiciada por uma educação de boa qualidade. Igualdade de resultados, não, porque os seres humanos diferem muito entre si), liberdade para empreender em busca da prosperidade e da felicidade (conforme os projetos de vida de cada um e tendo por limite básico os direitos dos outros a essa mesma busca). Por sua vez, o ambiente institucional e cultural mais fecundo para todas essas realizações traduz-se num governo limitado em sua capacidade de tributar e regulamentar e também no hábito das comunidades e outros ‘atores’ da sociedade civil de se associarem voluntariamente para a solução de uma série de problemas comuns, e não esperarem que tudo seja resolvido pela mão pesada do Estado. No final do segundo volume de sua “A democracia na América” (1840; o primeiro data de 1835), o pensador francês Alexis de Tocqueville (1805-1859) alertava que esse paternalismo estatal e essa infantilização da cidadania eram o novo tipo de despotismo que as modernas sociedades democráticas deveriam temer.
Instituto Millenium: Hoje no Brasil existe plena separação de poderes?
Kramer: O sistema presidencialista concebido pelos patriarcas da Constituição norte-americana com base em doutrinas como a da separação de poderes, da autoria de Montesquieu, em sua obra “Do espírito das leis” (meados do século 18), tinha por finalidade fazer com que os poderes se limitassem e se moderassem uns aos outros, impedindo que um deles se tornasse absoluto ante os demais e a sociedade.
Bem, essa teoria se espatifou contra a realidade histórica e cultural do patrimonialismo, do caudilhismo e da rígida hierarquização da enorme maioria das sociedades latino-americanas. Ao sul do Rio Grande (fronteira Estados Unidos/México), o espetáculo político mais corriqueiro é a alternância entre as sístoles arbitrárias de um Executivo imperial e as diástoles provocadas por espasmos de contestação anárquica.
No Brasil pós-regime militar e sob a ordem constitucional de 1988, consolidou-se o sistema político batizado pelo professor Sérgio Abranches de “presidencialismo de coalizão”, a meio caminho entre o regime presidencial de talhe norte-americano e o parlamentarismo europeu. Nos Estados Unidos, por exemplo, um deputado ou senador que aceite convite do presidente para ser secretário (ministro) de qualquer departamento (ministério) é obrigado a renunciar ao seu mandato no Congresso. Aqui, a distribuição de pastas ministeriais a congressistas ou aos companheiros de partido/facção partidária deles — algo normal e necessário no regime parlamentarista — é o preço que o Executivo precisa pagar para poder governar, isto é, colocar em prática os seus planos, propostas e políticas.
Com a fragmentação partidária produzida pelo nosso defeituoso sistema eleitoral de representação proporcional, baseado em lista aberta e unipessoal, não é a maioria parlamentar que “faz” o governo (como no parlamentarismo), mas sim o presidente, depois de eleito, é que precisa “fazer” a sua maioria no Congresso, recorrendo a expedientes tristemente corriqueiros como a distribuição de cargos na administração direta, indireta e empresas estatais e a liberação seletiva de emendas ao Orçamento em troca de apoio parlamentar. Sem isso, o governo se enfraquece e, no limite, acaba “caindo”, como ensina a experiência do ex-presidente Fernando Collor. Resultado: gastos públicos sempre crescentes, financiados por tributos cada vez mais escorchantes para sustentar uma máquina pública balofa, ineficiente, corrupta, onde mamam os apadrinhados de políticos ocupantes de dezenas de milhares de cargos em confiança e cuja fidelidade é aos interesses e aos projetos de poder dos seus patronos, e não a uma administração profissionalizada, mais em sintonia com os interesses públicos.
De outra parte, a multiplicação incessante de medidas provisórias (herdeiras do decreto-lei das ditaduras estadonovista e militar) desprestigia e desmoraliza o Poder Legislativo, além de aprofundar o sentimento de insegurança jurídica entre os agentes econômicos (empresários, investidores, consumidores). A ambígua simbiose entre o Executivo e o Congresso no Brasil, também desencoraja os legisladores — sejam eles governistas ou oposicionistas — a cumprir outra grande função constitucional que lhes cabe além de fazer leis: a de fiscalizar séria, permanente, minuciosa e eficazmente como o Executivo gasta o suado dinheiro do contribuinte.
Instituto Millenium: Como o Sr vê a atuação do Estado no Governo Dilma? Já é possível traçar um perfil?
Kramer: Os primeiros cem dias revelaram contradições preocupantes: se, de um lado, o governo Dilma se distanciou das atitudes ostensivas e veladas do seu antecessor diante de questões de direitos humanos em fóruns diplomáticos multilaterais (caso Irã), de outro intensificou a prática antidemocrática petista de aparelhar a máquina do Estado submetendo os interesses nacionais a conveniências partidárias.
No front da política macroeconômica as expectativas inflacionárias se acirram com o passar dos dias, refletindo o equívoco de trocar “mais um pouquinho de inflação” por pontos adicionais de crescimento do PIB, quando, na verdade, o problema se resume ao seguinte:o aquecimento da demanda logo acabam gerando pressões inflacionárias porque o governo não tem a coragem nem a capacidade política de liderar uma agenda de reformas (tributária, previdenciária, trabalhista etc) que desate os nós da burocracia, da insuficiência de infraestrutura e da baixa produtividade, promovendo um crescimento econômico mais vigoroso, sustentável e equânime.
Instituto Millenium: Antecipando o 2o Fórum Liberdade e Democracia, o Brasil está na encruzilhada? Qual modelo é urgente e qual é o ideal para o desenvolvimento e o fortalecimento da democracia?
Kramer: Sim, a encruzilhada brasileira se traduz na relutância da sociedade e na resistência dos governantes diante do desafio de consolidar uma ordem liberal, baseada na igualdade de todos os cidadãos perante a lei, na igualdade de oportunidades (e não de resultados) e também na remoção de sérias barreiras psicossociais e institucionais (sobretudo tributárias e fiscais) ao empreendedorismo e ao êxito socioeconômico decorrente do mérito de cada um.
Quanto ao aspecto propriamente político da problemática nacional, governo e oposição se igualam na falta de sinceridade e de vontade de produzir uma reforma dos sistemas eleitoral e partidário que possibilite, ao mesmo tempo, submeter os representantes eleitos ao escrutínio e ao controle dos representados (via voto distrital, de preferência “puro”), o que reduziria drasticamente as oportunidades para a proliferação de “legendas de aluguel”. Como? Pelo estabelecimento de cláusulas de desempenho que conduzam a um máximo de quatro ou cinco partidos, efetivamente representativos das correntes de opinião presentes numa sociedade liberal-democrática moderna, a saber: conservadorismo, liberalismo, social-democracia e esquerda com pendores mais estatizantes, porém fiel aos direitos da minoria, à alternância no poder com base em eleições periódicas e verdadeiramente competitivas, enfim, ao bê-a-bá da democracia liberal.
Por coincidência estou lendo “Por amor ao Mundo”, biografia de Hannah, cujos textos mais parecem um retrato do Brasil atual. Por exemplo, à pag. 268:espantada com a quantidade de novos ricos entre seus alunos, contou a Jaspers que se sentia numa excelente posição para estudar como uma democracia se transforma numa oclocracia-invocando novamente a conjunção da plebe coma a elite que considerava uma pre condição para movimentos totalitários.