Às vésperas das eleições municipais, após a recente aprovação da Lei de Acesso à Informação, e enquanto o Brasil julga o mensalão e experimenta pela primeira vez a aplicação da Lei da Ficha Limpa no processo eleitoral, entrevistamos o cientista político Paulo Kramer sobre os desafios para o fortalecimento da democracia no país.
Doutor pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj) e professor licenciado do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (Ipol/UnB), Kramer critica o comodismo nacional, ainda que acredite que a sociedade está cobrando mais: “O brasileiro acha que se o Estado sanciona uma nova lei, a realidade social muda em um passe de mágica. Não é o Estado que muda a sociedade, é a sociedade que deve se conscientizar sobre a necessidade de mudar a realidade e a política”.
Instituto Millenium: Como o senhor vê a democracia brasileira atualmente? Temos avançado?
Paulo Kramer: Apesar dos avanços conquistados ao longo dos últimos 20 anos, a democracia brasileira padece de um mal: a nossa classe política, nossos representantes eleitos têm visão de mundo, práticas e opiniões em descompasso com os avanços da nossa economia e da nossa sociedade. É um problema básico que está ligado ao sistema eleitoral, estruturado de uma forma que dá maior participação para os setores e regiões mais atrasados do país.
Imil: Há mais representatividade em determinadas regiões.
Kramer: No interior, em regiões mais tradicionais, ainda se vê relações familiares muito patriarcais. É comum um chefe de família decidir o voto dos demais parentes. Em um ambiente mais urbanizado, no qual a liberdade individual é maior, dentro da mesma casa convive a diversidade de opiniões.
O plano piloto de Brasília é um exemplo. Há uma grande concentração de pessoas da classe média e alta. Sendo assim, a gama enorme de candidatos, que faz com que essa independência dos eleitores, no sentido de que cada cabeça é um voto, acabe cancelando as escolhas dos eleitores mutuamente. Dessa forma, representantes de setores mais atrasados e menos esclarecidos chegam à Câmara Legislativa. Eu não estou dizendo que esses setores não devam ser representados, mas que outros estão sendo sub-representados.
Imil: E quanto ao sistema eleitoral?
Kramer: Há a questão de como os votos são contabilizados e como são estabelecidos os pisos e tetos para as representações dos estados na Câmara dos Deputados. O voto do eleitor de Roraima ou do Acre acaba valendo centenas de vezes mais que o voto de um eleitor de São Paulo, onde um deputado federal precisa de um número de votos muito maior para se eleger. É um problema de difícil solução.
Imil: E você consegue enxergar alguma saída?
Kramer: A aprovação de propostas de emenda à Constituição. Há uma proposta, de autoria do senador Álvaro Dias (líder do PSDB no Senado), que reduz o número de representantes na Câmara dos Deputados e tenta tornar a representação regional proporcionalmente mais justa. De qualquer forma, não vislumbro solução. Ao longo do nosso primeiro século de República, sobretudo depois da Revolução de 1930, da redemocratização de 1945 e da Constituição de 1946, estabeleceu-se uma cláusula pétrea – embora não escrita – que compensava o poder econômico de estados como São Paulo, muito superior aos estados mais atrasados, com “uma representação política mais numerosa”. Essa é a cláusula pétrea do federalismo brasileiro.
Na Constituinte de 1988, as regiões Nordeste, Norte e Centro-Oeste perceberam que unidas poderiam impor suas vontades aos constituintes de outros estados e regiões. Tem sido assim. Nada passa sem o apoio desse bloco.
Imil: Você acredita que o brasileiro entende de fato o processo eleitoral?
Kramer: Ao contrário da maioria dos cientistas políticos, acredito que sim. Concordo com o sociólogo João Gualberto, e com quem nos inspirou, o antropólogo Roberto DaMatta.
DaMatta acredita que o estatocentrismo da mentalidade das elites brasileiras faz com que esperemos que as reformas significativas tenham que partir do Estado. O brasileiro acha que se o Estado sanciona uma nova lei, a realidade social muda em um passe de mágica. Não é o Estado que muda a sociedade, é a sociedade que deve se conscientizar sobre a necessidade de mudar a realidade e a política.
No Brasil, a imprensa desempenha esse papel com muito mais energia do que a classe política. Até os políticos de oposição não cumprem o seu papel, ficam de “picuinhas” e demonstram fraca capacidade de análise política.
Imil: Ainda sobre eleições, o nosso sistema de votação eletrônica revela uma eficiência incomum na gestão pública.
Kramer: Assim como a nossa máquina arrecadadora. O resto é de terceiro mundo. No Brasil, aquilo que beneficia a classe política e a burocracia funciona em moldes suecos, enquanto os serviços públicos básicos estão “capengas”. As escolas públicas, por exemplo, saíram recentemente de uma greve vergonhosa.
Imil: Há uma grande defasagem na prestação desses serviços.
Kramer: Uma defasagem grande. O cientista político Alberto Carlos Almeida já chamou atenção para o fato de que no Brasil tudo aquilo que se massifica perde a qualidade.
Imil: O senhor pode explicar?
Kramer: Tenho 55 anos, sou carioca e sempre fui aluno de escolas públicas. Estudei em escola pública estadual, depois em escola pública federal (Pedro II), passei para a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e fiz meu mestrado e doutorado com bolsas do governo. Devo tudo o que sei ao ensino público. A escola pública do meu tempo no Rio de Janeiro era freqüentada pelas elites. Os pobres ainda estavam recolhidos aos bolsões rurais de pobreza no interior. As crianças mais pobres estavam fora da sala de aula.
Com a democratização das oportunidades do ensino, a educação se massificou e as crianças pobres foram para as escolas públicas, recebendo uma qualidade inferior de ensino. As classes média e alta migraram para o ensino particular, e não levaram apenas seus filhos e sim uma tecnologia de mobilização política, de cobrança, de reivindicação, que as pessoas muito pobres não têm devido ao fraco acesso à informação, comunicação e leitura.
A ausência de linhas de metrô nos aeroportos é outro exemplo do Alberto Carlos Almeida sobre ineficiência. É um tipo de infraestrutura comum nos países desenvolvidos. No Brasil apenas recentemente as pessoas de origem humilde utilizam o transporte aéreo. São questões que precisam ser discutidas pela classe política e pela sociedade civil.
Imil: As novas leis, como a da Ficha Limpa e de Acesso à Informação, representam um avanço democrático? E a Lei de Responsabilidade Fiscal?
Kramer: São um avanço, mas um avanço qualificado. Não adianta fazermos leis para a Escandinávia se o país é de terceiro mundo. O falecido senador do Amazonas Jeferson Peres, relator da Lei da Responsabilidade Fiscal na Comissão de Constituição e Jurisdição do Senado e na Comissão de Assuntos Econômicos, certa vez foi indagado: “Senador, o Brasil terá dinheiro para construir prisões para todos que transgredirem essa lei?” Era uma lei que criava exigências tão estritas e complexas que diziam: “O prefeito que não for preso por desonestidade sê-lo-á por ignorância”.
Imil: E a Lei de Acesso à Informação?
Kramer: O professor DaMatta e eu trabalhamos num projeto da Unesco em apoio à Controladoria Geral da União (CGU), que é responsável legal pela aplicação dessa nova lei. Nosso trabalho consistiu em coordenar pesquisas quantitativas e qualitativas com servidores federais de diversas áreas para tentarmos antecipar quais seriam as resistências que a burocracia colocaria à viabilização prática da lei.
A crítica que fizemos ao projeto, quando ele ainda tramitava, foi que nós não poderíamos colocar todas as nossas esperanças num pedaço de papel. Precisamos atentar para a necessidade de mobilizar e informar a sociedade.
Imil: A Lei da Ficha Limpa é um avanço?
Kramer: Um avanço importantíssimo conquistado graças à mobilização na internet, sem manifestações nas ruas, carreatas e barulho. O movimento consagrou as redes sociais como grande ferramenta política.
Imil: Essas leis (Ficha Limpa e a Lei de Acesso à Informação) vão influenciar as eleições deste ano?
Kramer: Sim, influenciarão crescentemente. Como democracia representativa, não podemos imaginar que a qualidade da classe política vá mudar radicalmente nessa eleição ou mesmo nas próximas. O que notamos é que a sociedade está em movimento, está cobrando mais. O julgamento do mensalão também contribui para esse processo, já que repercute muito nas redes sociais.
Imil: O senhor considera o Brasil um país familiarizado com as redes sociais?
Kramer: Apesar de ser um país com muita gente pobre, temos dezenas de milhões de pessoas nas redes sociais. Todo mundo tem acesso à lan house e celular. Graças à privatização das telecomunicações, diga-se de passagem. Isso faz com que as pessoas discutam política na web.
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