Falávamos em “pedrada” quando alguém dava um “fora” dizendo ou fazendo alguma coisa tão desviante da rotina que o ato soava absurdo ou rude.
Nestes tempos de globalização que, para muitos, é uma era de supressão de diferenças, o mundo às vezes fica de ponta-cabeça, produzindo pedradas mortais, reveladoras de nossa ignorância dos outros e, por tabela, de nós mesmos. Pois como é possível condenar alguém a morrer a pedradas como no Irã? Mas — vale refletir — fuzilar, guilhotinar, enforcar, decapitar, esquartejar, eletrocutar ou envenenar seria menos cruel do que apedrejar? Devese lembrar que se a execução pública tem como alvo inibir ou erradicar, o castigo mais doloroso deve — pela velha lógica patriarcal e radical do exemplo — ser o mais cruel. Isso parece absurdo em tempos em que legislamos proibindo palmadas e tentando separar políticos honestos dos criminosos, mas lamentavelmente ocorre nos países onde há pena de morte e nas ditaduras.
Afinal as pedradas levam à indignação diante da injustiça e da opressão das mulheres, mas também ao papel simbólico das pedras. Havia uma pedra no caminho do poeta e muitas na nossa jornada. Nos sistemas tradicionais as pedras marcam territórios. Nelas foram inscritas as leis de Deus, e a força criativa do falo, idolatrado na forma de um calhau na Índia e outros locais. De pedras são feitas as montanhas, esse ponto médio entre o céu e a terra, entre deuses e homens. As pedras falavam e viviam em agremiações, como diz mestre Câmara Cascudo, e como coisas de longa duração têm, em muitas culturas, uma relação direta com as origens do mundo. São elas que, como ensinam os geólogos, dão testemunho do planeta antes de ele ter sido pisado por seres vivos.
Não estou aqui para defender um costume abominável, nem para justificar os estados teocráticos fundados nos ensinamentos de Maomé, mas para lembrar que, se só Deus pode dar e tirar a vida, como bem lembrou o Lula quando, num comício e, como sempre, demagogicamente, pediu clemência pela vida de uma mulher iraniana condenada ao apedrejamento, Ele (Deus) — como todos os radicais — legitima a morte aos seus inimigos com a mesma serenidade paternal com a qual abenço a seus eleitos.
Lembro também que a velha Nova Inglaterra, dos puritanos que inventaram os Estados Unidos democráticos e igualitários de hoje, fundou uma cidade em cima de um morro, uma Nova Jerusalém, cujo código era tão bíblico e fundamentalista quanto esses vigentes no mundo islâmico.
Conclusão fugaz: existem muitas modernidades do mesmo modo que há mais coisas entre o céu e a terra do que imagina a nossa vã filosofia e o nosso trêfego populismo, porque não é fácil conciliar autonomia política, soberania religiosa e nacional com costumes que abominamos como é o caso do apedrejamento e, ao lado dele, do despotismo (diante do qual, aliás, o nosso presidente emudeceu).
Temos levado muitas pedradas. A da eventual substituição de um apedrejamento por um “humanitário” e condescendente fuzilamento em nome do que é tomado como um crime inafiançável — o adultério — que, em algumas plagas, só é cometido pela mulher, jurídica e religiosamente englobada por seu marido. E, no Brasil, a terrível e brasileiríssima condenação pelo eminente Conselho Nacional de Justiça de dois magistrados que vendiam sentenças a aposentadorias milionárias.
Qual é o elo entre punir uma mulher com apedrejamento e condenar juízes a aposentadorias de 25 mil reais mensais? Penso que o excesso e o transbordamento são seus denominadores comuns. No mínimo, temos uma ausência chocante de bom senso.
Mas, como lembra o presidente Lula, voltando a ser um homem de princípios, cada terra tem seus usos a serem respeitados. No limite dessa ausência de ética, ainda teríamos escravidão como continuamos a ter servidão doméstica. Como temos, no caso dos juízes que vendiam sentenças, condenados a ficarem em casa recebendo de todos nós 25 mil por mês até o fim de suas vidas — com os devidos direitos de transmitirem esses ordenados de condenados às suas famílias. Uma prova cabal de como o Estado brasileiro aristocratiza cargos e pessoas. Mais do que um clássico patrimonialismo, temos um estado republicano de molde imperial e aristocrático, no qual alguns cargos e poderes penetram a carne e o sangue na pessoa que deles tomam posse. Com isso, são muito mais do que sócios ou donos do aparelho estatal, como ocorre no patrimonialismo, pois passam a ser filhos diletos e herdeiros deste Estado que sempre é forte com os fracos e fraco com os fortes.
Qual o elo entre punir mulheres ao apedrejamento e condenar juízes a aposentadorias?
Fonte: Jornal “O Globo” – 18/08/10
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