O economista francês Frédéric Bastiat nos ensinou, na fantástica obra A Lei, que a legislação é uma força coletiva que se justifica para complementar ou substituir as forças individuais na preservação da existência pessoal, da liberdade individual e da propriedade. Por essa razão, a ameaça de uma regulação que cerceasse, em definitivo, a liberdade de os brasileiros utilizarem aplicativos de transporte privado individual gerou tanta preocupação e protesto dos cidadãos. Afinal, teria uma lei esse direito?
Proposto pelo deputado Carlos Zarattini (PT-SP), o Projeto de Lei 5587/2016 visou originalmente implementar uma regulamentação nacional consideravelmente restritiva sobre um novo mecanismo de mercado que, rapidamente, popularizou-se no Brasil a partir do início de 2014 pela empresa estrangeira Uber. Combinando tecnologias como o GPS e smartphones cada vez mais potentes com avanços sociais como a popularização das conexões remotas 3G e 4G, a companhia foi pioneira em desenvolver uma plataforma que ligava usuários motoristas a usuários passageiros. De um lado, garantindo uma fonte de renda nova a quem tivesse automóvel e tempo disponível para dirigir; de outro, oferecendo uma alternativa de transporte individual a quem, por quaisquer motivos, optasse por não utilizar o táxi e aceitasse viajar com motoristas credenciados pelo aplicativo. A empresa apostou na criação de um novo nicho de mercado: do transporte privado individual, não o transporte público individual, dos táxis, criado e gerido pelo poder público. O resultado foi um sucesso e o aplicativo rapidamente popularizou-se no Brasil.
Tão logo começou a se popularizar, tanto no Brasil quanto fora do país, o Uber passou a ser alvo de protestos de taxistas. À época, surgiu toda sorte de argumentos e reações, alguns mais razoáveis, outros consideravelmente menos. Embora houvesse um ponto discutível em relação à segurança jurídica de quem havia investido para entrar no setor, ecoaram mais alto paralisações de taxistas que ampliaram a antipatia nos cidadãos, pontuais agressões físicas a motoristas e passageiros de aplicativos e repetidas críticas de que os apps de transporte constituíam “pirataria” pelo simples fato de não serem regulados – como se uma regulamentação, aliás, fosse um fim nela própria, e não um meio para se construir um sistema considerado socialmente seguro e, idealmente, eficiente.
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Zarattini buscou, em seu projeto de regulação, asfixiar os aplicativos de transporte privado, impedindo a livre decisão do indivíduo. No PL, entre outras medidas, o parlamentar propôs que o transporte individual de passageiros só poderia ocorrer com taxistas e que a utilização de veículos particulares fosse sumariamente vetada. Em outras palavras, a medida, se aprovada naquela formulação, acabaria com o modo pelo qual conhecíamos os apps de transporte, como o Uber, o 99 e o Cabify – estas duas últimas empresas, novatas no mercado para competir com o Uber. De uma só vez, também seria dado um golpe contra essa opção honesta de renda para, segundo estimativas, 500 mil motoristas de aplicativos que encontram nessa atuação uma opção digna e oportuna de trabalho.
Voz lúcida no Congresso Nacional, o deputado Daniel Coelho (PSDB-PE) interveio sabidamente no projeto, reconhecendo o valor das inovações trazidas pelos plataformas como o Uber, o 99 e o Cabify, que têm atuado por legítimos interesses de mercado na criação de soluções para a mobilidade urbana, e apontou que seria um erro impor à sociedade o sistema antiquado dos táxis. Para Coelho, o melhor caminho era, paralelamente à permissão dos aplicativos, criar uma “pauta positiva” para os motoristas de táxi, modernizando o sistema. No Rio de Janeiro, um exemplo prático do que Coelho defendeu é o inovador Taxi.Rio, aplicativo lançado pelo prefeito Marcelo Crivella que fez do sistema de táxis um concorrente legítimo e saudável dos aplicativos. O sistema permite aos motoristas concorrerem entre si por descontos de até 40% ao passageiro, sem pagar qualquer porcentual sobre as corridas à prefeitura e, ao mesmo tempo, sendo “fiscais” do governo municipal por toda a cidade, municiando o Centro de Operações do município com informações de grande valia. Inovação inteligente que, em breve, estreará também em São Paulo devido a um convênio com o prefeito João Doria.
Em tempo, felizmente, devido à pressão popular, a regulação dos aplicativos acabou sendo alterada no Senado e, voltando à Câmara dos Deputados, tornou-se uma regulação positiva, sendo comemorada inclusive pelas plataformas. Sancionada sem vetos pelo presidente Michel Temer nesta segunda-feira, a redação final altera a Lei 12.587/2012, tipificando o “transporte remunerado privado individual de passageiros” e também respeitado o princípio da subsidiariedade, isto é, garantindo que municípios são entes mais apropriados para fazer regulações mais específicas, mas sem cercear o direito do passageiro.
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De minha parte, havia preocupação quanto ao cenário sem qualquer regulação, embora a eficiência dos aplicativos fosse inquestionável – os resultados falam por si. Os próprios aplicativos também não eram avessos à existência de regras mínimas para o serviço, dada a importância de termos princípios de segurança ao cidadão e de mantermos um ambiente de igualdade para a justa competição com os taxistas. Nesse sentido, as novas regras nacionais trouxeram avanço. No que tange a manter um ambiente de iguais condições, a nova legislação prevê também aos motoristas de aplicativos a obrigatoriedade de se ter carteira de habilitação com a informação ao Detran de que se exerce atividade remunerada (uma informação importante para controle dos órgãos públicos) e da cobrança de tributos municipais (ISS) pelas corridas. No que tange à segurança, os motoristas de aplicativo precisarão, assim como os taxistas, arcar com seguros e, obrigatoriamente, ter certidão negativa de antecedentes criminais (algo que, na prática, os apps já faziam, mas que agora passa a ser obrigatório).
Também comemorada pelos aplicativos, a sociedade brasileira conseguiu uma significativa vitória ao ver aprovada no Congresso uma regulação interessante, amiga da liberdade de mercado, e justamente de onde menos se poderia esperar: de um projeto de lei que visava, originalmente, coibir a atividade. A lei foi boa: preservou a liberdade de escolha do indivíduo e poderá criar um ambiente ainda melhor de concorrência.
Fonte: “Gazeta do Povo”, 28/03/2018