Acaba de sair o mais completo balanço da insustentabilidade: o Relatório Planeta Vivo 2010 . Essa é a oitava ediçãodo documento que mais notabilizou a Pegada Ecológica, publicado a cada dois anos pelo WWF- Internacional (World Wide Fund For Nature), com a Zoological Society of London (ZSL) e a Global Footprint Network (GFN).
Esse balanço entre a pressão humana sobre a natureza e sua capacidade regenerativa (ou “biocapacidade”), que surgiu no início dos anos 1990, na Universidadede British Columbia, em Vancouver, resultou de pesquisa do ecólogo William E. Rees. A metodologia foi consolidada em 1994, em tese de doutorado de um de seus alunos, o engenheiro suíço Mathis Wackernagel. Em seguida foi publicada em co-autoria no livro “Our Ecological Footprint” (New Society Press, 1996). No entanto, por ter despertado grande interesse, proliferaram cálculos pouco rigorosos, até que surgisse, a partirde 2003, a normatização do GFN ( www.footprintnetwork.org), dirigido por Wackernagel.
É assustadora a principal revelação do oitavo relatório: em 2007 a sobrecarga imposta pelas atividades humanas foi 50% maior que a capacidade regenerativa do planeta. Além disso, o relatório também apresenta projeções com base em diferentes variáveis relacionadas ao consumode recursos naturais, uso da terra e produtividade, graças a uma nova “Calculadora de Cenário de Pegadas”.
No cenário básico, a perspectiva não poderia ser mais tétrica: até 2030 a humanidade precisaria da biocapacidadede dois planetas Terra para poder absorver as emissões de gases de efeito estufa (GEE) e manter o consumo de recursos naturais. Cenários alternativos, que pressupõem mudanças nos padrões de consumo e nas matrizes energéticas, ilustram quais seriam as ações imediatas capazes de reduzir o hiato entre a Pegada Ecológica e a biocapacidade.
Três outros dados são cruciais. A biodiversidade global sofreu uma queda de 30% em menos de quarenta anos, atesta o mais antigo indicador do WWF – Internacional, o IPV: Índice Planeta Vivo. Chegam a 71 os países com déficit em recursos hídricos suficiente para comprometer a saúdede seus ecossistemas, aponta seu mais novo indicador, o PHP: Pegada Hidrológica da Produção. Foi de 35% o salto das emissões de GEE desde o primeiro relatório, de 1998.
Todavia, há uma séria disparidade entre a excelência desses diagnósticos e o conteúdo do capítulo final – propositivo – intitulado “Uma economia verde?”. Dá a entender que a “economia verde” preconizada pelo WWF- Internacional está na linha da “estratégia de crescimento verde”, esboçada em maio pelo conselho ministerial da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), e que se encontra em fasede consultas para que uma versão definitiva seja adotada em 2011.
É péssima essa versão preliminar da estratégia da organização porque tenta fazer de conta que o crescimento não constitui “dilema”, como evidenciou com muita clareza o relatório do governo britânico “Prosperity without growth?” . Os ganhos de ecoeficiência que reduzem a proporção de energia e de matéria em cada unidade de produto são mais do que compensados pelo aumento da população e de seus níveis e padrões de consumo. É a chamada “questão da escala!”, evidenciada pelo contraste entre as fortíssimas reduçõesde intensidade de carbono das principais economias e o incessante aumento de suas emissões em termos absolutos.
Ora, pertencem justamente à OCDE os raros países que já poderiam planejar uma transição à condição estável, pois suas populações deixaramde aumentar e a melhoria de sua qualidade de vida não depende mais de aumento da produção. Como mostrou o modelo macroeconométrico de Peter Victor para o caso do Canadá, descrito no livro “Managing without growth; slower by design, not disaster” (Edward Elgar, 2008).
Entre a manutenção da estabilidade social e a necessidade de reduzir o impacto das atividades humanas sobre a natureza, não existe saída simplista como pretendem os que especulam com essa ideiade um suposto “crescimento verde”. O dilema se impõe porque a pressão sobre os ecossistemas não cessa de aumentar com a expansão da economia: a desmaterialização não engendra alívio ecossistêmico.
Ao fazer de tudo para evitar o enfrentamento de um sério debate sobre o “dilema do crescimento”, a OCDE está compondo um verdadeiro “samba do crioulo doido”. É lamentável perceber, portanto, que o WWF – Internacional se deixa ludibriar por tamanha operaçãode auto engano.
Por último – mas não menos importante – o logro do “crescimento verde” esboçado pela OCDE também ignora as recomendações da Comissão Stiglitz-Sen-Fitoussi, feitas há exatamente um ano (www.stiglitz-sen-fitoussi.fr). Em curta nota de rodapé, mal reconhece a necessidade de superação dos atuais indicadores de desempenho econômico e de qualidade de vida. Chocante, pois foi decisiva a contribuição do Serviço de Estatísticas da OCDE para o sucesso do trabalho dessa Comissão.
Fonte: Jornal “Valor econômico” – 19/10/10
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