No apagar das velas do mensalão, o Supremo, por maioria apertada, entendeu possível a imediata cassação judicial de parlamentar condenado por decisão criminal transitada em julgado. A ordem está dada; a questão, todavia, não está superada. Isso porque os quatro votos em sentido contrário autorizam a interposição de embargos infringentes, que provavelmente virão, reinaugurando o debate sobre esta intrincada matéria constitucional. De minha parte, antes da subjetiva avaliação do julgado, me convém lembrar elucidativo e invulgar fato histórico.
Dando continuidade ao ressoar dos ecos ditatoriais de 64, foi requerida autorização à Câmara para o processamento do deputado Márcio Moreira Alves por palavras proferidas na tribuna parlamentar. Apesar da clareza da lei quanto à imunidade material dos deputados e senadores por quaisquer opiniões, palavras e votos no fidedigno exercício de suas funções, levantaram-se vozes a questionar a higidez normativa e a consequente autoridade da Câmara para conceder ou não a licença de impulso processual contra um de seus membros.
Foi que, na sessão de 11 de dezembro de 1968, a nação foi brindada com discurso magistral de um dos seus maiores oradores. Retornando de conferência jurídica no Recife, o então deputado Paulo Brossard discorreu brilhantemente sobre as prerrogativas parlamentares, vindo a assentar, com seu exímio habitual, que “à Câmara não cabe exonerar-se das suas responsabilidades na defesa das prerrogativas que são suas. O dever é seu, e ela não pode transferi-lo a outro Poder. Não pode dar de ombros e confiar que o Supremo Tribunal vá defender prerrogativas que são suas, não dele”. Segundo o registro da imprensa da época, a Câmara ouviu em silêncio e aplaudiu de pé para, no dia seguinte, negar o sobredito pedido de instauração processual.
A partir daí, quem conhece a história bem sabe os seus desdobramentos. O que importa, aqui, para o caso do mensalão, é que existem prerrogativas que são do Parlamento e que só o Parlamento, sobre elas, pode dispô-las. Daí, a razão de ser da regra do artigo 55, § 2º da Constituição federal. Até mesmo porque o político corrupto não traduz um problema meramente individual, mas uma agressão à própria dignidade da respectiva Casa legislativa. Logo, estamos diante de uma responsabilidade institucional conjugada de ambos os Poderes: o Judiciário deve aplicar a lei e condenar os acusados, enquanto o Parlamento, no fidedigno exercício da política democrática, tem o dever de cassar o mandato do político corrupto.
Ocorre que o Parlamento brasileiro, por insistentes fatos nada lisonjeiros, anda institucionalmente desacreditado. Vivemos um perigoso e preocupante tempo de apequenamento moral do Congresso. Aliás, o próprio mensalão foi uma tentativa deliberada de subjugar o Parlamento aos projetos imperiais do partido oficial. Ao invés de um golpe de força, foi engendrado sofisticado mecanismo de compra de consciências políticas venais. E, quando se pensa que a degeneração dos costumes chegou ao chão, vem um herói e me apresenta um relatório de importantíssima CPI com apenas “página e meia”… Ora, é demais!
Ou o Parlamento muda, ou será mudado pelas circunstâncias. Aliás, por que o ilustre presidente da Câmara, ao invés de procurar os microfones da crise ou do impasse, não convoca, de imediato, uma sessão extraordinária (artigo 57, § 6º, II, da Constituição) para a imediata cassação dos deputados mensaleiros? Assim o fazendo, o Legislativo demonstrará o seu compromisso democrático perante a nação e, ainda, que está acima de eventuais divergências hermenêuticas quanto ao teor normativo da Carta constitucional. Enfim, saídas políticas existem; basta querer e ter espírito público para fazê-las. A dignidade parlamentar agradece!
Fonte: Jornal do Brasil, 30/12/2012
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