A decisão judicial que rapida e celeremente proibiu o Estadão de divulgar informações da investigação sobre Sarney provocou diversas reações, de diversos tipos. Tendo sido uma ação praticada pelo governo, não há dúvida de que pode ser equiparada à censura. No contexto da América Latina, com Chávez confrontando jornalistas, a proibição fica pior ainda. Todavia, é preciso fazer uma pequena distinção. A liberdade de imprensa não é um direito especial e sacrossanto concedido a uma classe especial e sacrossanta de pessoas chamadas “jornalistas”. A liberdade de imprensa é apenas uma possibilidade contida na liberdade de expressão que qualquer pessoa tem, e essa sim merece toda proteção. As implicações desta discussão se estendem à própria idéia de democracia liberal e à distinção entre o público e o privado.
A palavra “público”, para começar, é usada com diversas conotações diferentes. O governo pode falar em atos públicos para minimizar o fato de que o governo é composto de indivíduos que agem de acordo com suas cabeças, e não de acordo com uma fantasmagórica “vontade geral”. Também se fala em “funcionário público” e não em “funcionário do governo”, e com isso se pretende enfatizar que o funcionário está a serviço de todos os que pagam impostos, isto é, de todos. Qualquer pessoa pode falar em “espaço público”, mas o mais comum é que a expressão venha numa reclamação a respeito de como os outros não respeitam o “espaço público”. E quando se fala em “opinião pública”, normalmente se quer dizer “a opinião da maioria”, ainda que essa opinião seja um tanto difícil de determinar. Mesmo em relação ao caso Sarney, tendo a suspeitar de que a maioria das pessoas não tenha opinião nenhuma, e que, como de hábito, o “pública” no sentido de “da maioria” corresponda na verdade a “minha e de meus amigos”. Não tenho como não recordar o que Neil Postman disse numa entrevista sobre Susan Sontag: a escritora nova-iorquina teria ficado estupefata diante da eleição de Bush pai porque não conhecia ninguém que tivesse votado nele…
Por exemplo: o Jornal O Globo deste sábado (08/08/09) levanta a questão de se a imprensa representaria ou não a opinião pública, lembrando que Winston Churchill disse que não existia “opinião pública”, mas apenas “opinião publicada”, distinção que a mim parece acertadíssima. Nunca se fala em opinião pública sem pressupor que essa opinião tenha alguma espécie de direito especial. Por exemplo, quando um deputado declarou que “se lixava para a opinião pública” , aquilo foi escandaloso. Fora de contexto, podemos dar uma interpretação negativa e outra positiva (sim, isso mesmo) para a frase. A negativa é que o deputado não se importa com as pessoas que pagam impostos, o que parece verossímil. A positiva é que as regras de funcionamento do Estado estão acima da opinião pública, e estão mesmo. Ou deveriam estar. É possível acusar alguém pela imprensa, mas o que deve contar é um julgamento dentro do devido processo legal. Aliás, a função principal do processo legal é evitar os linchamentos públicos e, com isso, limitar a opinião pública. Será o governo o braço armado da “opinião da maioria” ou uma força que protege os inocentes e evita crueldades?
Que ninguém duvide de que defendo radicalmente a liberdade de expressão e com isso a liberdade de imprensa. Prefiro mil vezes uma imprensa livre e cheia de defeitos a uma imprensa controlada pelo governo sob qualquer aspecto. Defendo inclusive a abolição do direito de imagem, já que ninguém pode ser dono da opinião de outras pessoas, e a imagem de alguém é a opinião que outras pessoas têm desse alguém. É pela minha defesa da liberdade de expressão que venho dizer que o uso insistente da expressão “opinião pública” para legitimar certas ações pode ser contrário ao espírito mesmo da democracia liberal, pois uma das coisas que a distingue, além da presunção de inocência, é a recusa em oferecer bodes expiatórios à turba enfurecida.
(Publicado em OrdemLivre.org)
Pedro,
Parabéns pelo seu texto. Gostei da abordagem, lúcida e precisa. Suas observações a respeito da “opinião pública” tocaram em pontos que normalmente são deixados de lado.
Um abraço.