A estudante paulista Keille Pereira, de 19 anos, foi uma das milhares de pessoas que inundaram as redes sociais com condenações ao espetáculo de abertura da Copa do Mundo. Mas, ao contrário da maioria dos internautas, ela não criticou o desempenho dos cantores, a beleza das fantasias ou a coreografia dos bailarinos. O motivo da decepção era outro — a ausência de qualquer homenagem aos oito operários mortos na construção dos estádios. Keille perdeu o pai, o motorista Fábio Luiz Pereira, num acidente durante as obras da Arena Corinthians em novembro do ano passado. Ela decidiu, então, criar um abaixo-assinado on-line para que a Fifa e o governo brasileiro construam um monumento em memória daqueles que perderam a vida para viabilizar a Copa. Em menos de três dias, seu manifesto já tinha mais de 100 mil assinaturas.
— Levei um susto com a repercussão! A petição cresceu muito rápido. Eu assisti à abertura da Copa esperando alguma homenagem não só a meu pai, mas a todos os outros mortos em acidentes nas obras dos estádios. Esperava uma menção, um minuto de silêncio, alguma coisa para lembrar que pessoas perderam a vida por aquele evento. Fiquei muito magoada. Não estamos pedindo nada grandioso, mas algo simbólico, como uma pequena placa com os nomes dos trabalhadores mortos no estádio ou no Museu do Futebol — diz a estudante ao “Globo a Mais”.
A petição de Keille já conta com quase 170 mil assinaturas. Ela espera coletar nos próximos dias pelo menos mais 30 mil para encaminhar a demanda à Fifa, ao ministro dos Esportes, Aldo Rebelo, à prefeitura de São Paulo e até à diretoria do Corinthians. Manifestos como esse têm se multiplicado. Neste momento, o ativismo que explodiu nas ruas em forma de protestos no ano passado parece estar de volta ao espaço virtual, com cada vez mais adeptos, num país onde mais da metade da população — 51%, segundo o Comitê Gestor da Internet no Brasil — tem acesso à rede. E o maior engajamento no debate democrático já representa um desafio a especialistas em direito digital, cientistas políticos e até legisladores. Afinal, apesar de previstos pela Constituição, os abaixo-assinados dão voz ao cidadão comum, ajudam a criar influências, mas ainda não têm qualquer valor jurídico.
— As petições on-line, hoje, são uma ferramenta de pressão popular. Acho que são uma ferramenta poderosa, que pode vir a ser utilizada realmente com poderes além da mera pressão. Mas, para que isso ocorra, o primeiro passo é garantir sistemas de autenticação segura, ou seja, de forma que torne possível garantir que uma pessoa assinou a petição on-line apenas uma vez — explica a advogada e especialista em direito digital Cristina Sleiman.
Garantir a autenticidade das assinaturas virtuais ainda é um enorme obstáculo. Nos sites de petições, a identificação se dá através das contas de e-mail do usuário. Mas como garantir que determinada causa tem, de fato, determinado número de apoiadores quando o internauta pode criar diversas contas de e-mail para o mesmo fim? Faltam mecanismos para isso.
— A fraude pode ocorrer mesmo em petição física, nos velhos abaixo-assinados de papel, mas a tecnologia convida, pois as pessoas sentem mais coragem por achar que não serão descobertas. Não tem o momento “olho no olho”. Por enquanto, por não ter um respaldo jurídico no quesito segurança, o mecanismo pode servir para fazer valer ideias e, principalmente, chamar atenção, provocando ações que até então estariam esquecidas — afirma Cristina.
Os indignados virtuais ganharam voz, em parte, graças à ação de sites como os gigantes Avaaz e Change.org, duas das principais plataformas de petições on-line do mundo. Com versões em português, elas já contabilizam, juntas, quase 6 milhões de usuários somente no Brasil.
— Nós registramos um crescimento grande desde outubro de 2012, quando começamos a trabalhar no Brasil. Temos hoje 2 milhões de usuários cadastrados e recebemos, em média, 200 novas petições por mês. Durante a Copa do Mundo, chegamos a um pico de 700 abaixo-assinados e estamos nos preparando para outro pico nas eleições. É uma ótima oportunidade de as pessoas se engajarem na sociedade — diz a a diretora de campanhas do Change.org, Graziela Tanaka.
A própria Constituição Federal incentiva a participação do povo na vida democrática. Segundo o artigo 61, uma “iniciativa popular pode ser exercida pela apresentação à Câmara dos Deputados do projeto de lei subscrito por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados, com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles”. Por isso, quando uma determinada causa atinge um certo número de assinaturas — virtuais ou mesmo físicas — não significa que terá um efeito imediato.
Na rede, as demandas são as mais variadas possíveis. Uma petição pedindo a renúncia do presidente do Senado, Renan Calheiros, por exemplo, alcançou a marca de 1,6 milhão de assinaturas. Ele continua no posto — indicando que o peso dos números é mesmo relativo. Mas com alguns poucos milhares de simpatizantes pode-se conseguir alguns êxitos — como as baianas de Salvador que, com pouco mais de 17,5 mil assinaturas em sua petição, obtiveram autorização da Fifa para vender acarajé na Arena Fonte Nova durante a Copa do Mundo.
— A Copa foi uma oportunidade para a conquista de direitos. Mas as causas com mais apelo são aquelas com demandas na área de infraestrutura, mobilidade urbana, melhorias de ruas e escolas — revela Graziela.
A Avaaz é uma organização não governamental, vive de doações de usuários, tem uma inclinação mais política e se define como uma “comunidade de mobilização on-line”, e não somente uma plataforma de petições. A Change, por sua vez, é financiada por abaixo-assinados patrocinados, mas garante não moderar as campanhas, permitindo, inclusive, petições opostas. Tanta liberdade preocupa alguns especialistas. Não há dúvidas de que essa nova forma de mobilização terá um impacto político — o que desperta temores de que parte da população fique alijada dessa nova forma de expressão democrática.
— A democracia participativa é bem vinda e prevista de forma institucionalizada na forma de plebiscitos, conselhos municipais… As petições on-line são apenas uma forma não institucionalizada de pressão. Não ameaçam a democracia representativa, o Congresso, mas é preciso ir com calma, aprender como usar esses novos mecanismos. Há dúvidas sobre a representatividade dessas demandas, pois nem todo cidadão brasileiro tem acesso à internet, os mais pobres não têm — alerta o cientista político Fernando Abrucio, da Fundação Getúlio Vargas.
Ele garante, porém, que essa tendência é irreversível:
— Estamos assistindo a uma mudança de cultura no Brasil nos últimos 20 anos, de mudança social, onde as pessoas têm mais emprego, renda e consumo. Com todo esse processo, as pessoas vão querer demandar cada vez mais.
Para especialistas, essa maior participação popular revela bem mais do que uma mudança nos meios tradicionais de mobilização social. Fortalece a democracia e encurta distâncias para que os pleitos da população sejam ouvidos e atendidos sem intermediários.
— Este fenômeno é parte de um processo natural de modernização, amadurecimento, consolidação da democracia brasileira. Na Europa, essas iniciativas populares são muito comuns. Acho que aqui existe um medo infundado de que a democracia participativa ameace a própria democracia. Todas as pesquisas indicam o contrário, mostram que não há ameaça nenhuma às instituições democráticas, conselhos, Parlamentos ou sindicatos — declara a cientista política Thamy Pogrebinschi, coordenadora do Laboratório de Estudos sobre a Democracia (LED) do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (Iesp) da Uerj.
Segundo ela, Parlamentos, conselhos e sindicatos ganham com os pleitos on-line, um aliado poderoso para permitir que os cidadãos exerçam sua cidadania além do voto a cada quatro anos.
— Chamamos isso de crescimento da participação não institucionalizada. É outra forma de participação, que oferece novas ideias e permite que os parlamentares saibam o que os eleitores querem. Um próximo passo, no futuro, é que haja mais que petições, mas que seja possível a construção conjunta de legislação. Isso já funcionou muito bem no debate do Marco Civil da internet. Estamos vendo o amadurecimento da democracia e o fortalecimento de estruturas existentes. Não cabe mais que o voto seja a única forma de democracia — sentencia a pesquisadora.
Fonte: O Globo
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