Uma empresa privada visa lucro. Uma empresa privada que vai à Bolsa de Valores passa a ser empresa pública e o fim lucro passa a ser obrigação assumida junto aos acionistas e demais stakeholders que confiaram nela quando investiram. Seus executivos precisam prestar contas aos diversos níveis de governança da empresa, daquilo que prometeram cumprir – dar lucro. Passa a funcionar sob os olhos do mercado, da indústria em que atua, de seus acionistas e das regras da Bolsa e da CVM.
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Se uma empresa é estatal e seu dono, seu “acionista” Estado não tem a natureza de alcançar “fins lucrativos”, no fim ela também não terá fins lucrativos, levando consigo a mesma natureza do dono. Mesmo que tenha se apropriado do obscuro tesouro do monopólio. Mesmo, ainda, que desfile no palco da Bolsa vestida de Big Cap, fingindo não ser apenas uma mera estatal obesa com tendência a proceder mal.
Esta é sua condenação pelo fluxo natural da lei da realidade, mais cedo ou mais tarde. No caso da Petrobrás, desconfiávamos, mas não víamos toda a realidade; vimos agora pelo menos parte dela: quem lucrava eram seus executivos milionários e os operadores da corrupção no seu entorno, na mistura da política e negócios escusos. Todos eles com o panfleto em punho “o petróleo é nosso” e trombeteando que “a Petrobrás é brasileira”. A Petrobrás ainda é deles. E certamente ainda não vimos tudo.
O escândalo da Bolsa de NY em 2002 revelou que os executivos (todos presos) da gigante elétrica Enron corrompiam a maior consultoria do mundo, Andersen Consulting (extinta, depois disso), para ela não enxergar a manipulação que faziam na contabilidade e subscrever seus balanços com extraordinários resultados falsos apenas para aumentar seus milionários bônus. Isso num ambiente de negócios, com os rigores e regulamentações da SEC – Securities Exchange Commission, a CVM deles, e sem pressões políticas.
Imagine então o que pode fazer com sua contabilidade e seus balanços uma estatal brasileira monopolista do petróleo e bilionária, com setenta anos de puro corporativismo, como é a Petrobrás, num ambiente de gigantescas pressões corporativas e políticas. Basta olhar o que já vimos com a revelação de todo tipo de crime que vinha praticando há tantos anos. De fato, certamente não vimos tudo.
O que vem fazer neste ambiente de mercado – a Bolsa de Valores – uma empresa estatal naturalmente obesa, fingindo ser atleta do mercado de petróleo? O que ela pretende ao arrastar para lá os seus ocasionais donos – os governos – e suas políticas de ocasião? Parece que os que decidiram levar a monopolista brasileira de petróleo para brincar na Bolsa de Valores eram megalomaníacos invejando sheiks sauditas ou oligarcas soviéticos – e enriquecer uma porção de sócios amigos do governo e seus executivos poderosos, tudo enfeitado por uma multidão de nano sócios encantados com sua aparência de blue ship.
Então, se empresa estatal não deveria ir à Bolsa de Valores porque sempre haverá conflito de interesses; se a indústria de petróleo é tão grande que não deveria haver monopólio; se ir à Bolsa de Valores ou não deveria ser decisão das empresas privadas que operam nesta indústria, significa que o Estado não deveria ser dono de estatal de petróleo. E, claro, não se meter em monopólios nem em Bolsa de Valores.
É que as leis de governança de uma empresa listada na Bolsa de Valores conflitam com as leis de governança de uma empresa estatal. Este conflito de interesses que agora podemos enxergar melhor na Petrobrás pela lupa da guerra e da pandemia decorre de uma lei natural: empresa estatal não deveria estar na Bolsa de Valores.
Dizer que a estatal Petrobrás não deveria estar na Bolsa significa também dizer que não deveria existir o monopólio estatal brasileiro de petróleo – aliás, não deveria existir nenhum monopólio estatal no mercado. Todas as petroleiras estatais do ocidente foram focos de poderes paralelos aos estados e seus “donos” cometeram crimes de corrupção, formação de quadrilha e tantos outros quantos se possa imaginar que o ser humano faz às escondidas com tanto dinheiro dos outros. No México os sindicatos já tomaram de assalto a PMEX durante os governos de esquerda no passado; na Venezuela estes malucos conseguiram quebrar a PDVESA e aqui já vimos um pouco do que fizeram.
Empresa estatal é uma ferramenta legal do Estado brasileiro para desempenhar algum papel na economia e interferir no mercado, justificando isso com as ficções dos que defendem o princípio do dirigismo estatal de tudo na economia ou de um pouco menos ou menos ainda, que historicamente levam selos ideológicos de variados tons de “modelo de estado”. São projeções humanas criativas, mas antinaturais, que brigam com a lei da realidade.
Importante enfatizar que empresa que está na Bolsa de Valores se chama empresa pública – o que não tem nada a ver com empresa estatal. Por isso que para ir à Bolsa ela faz Oferta Pública de Ações e seu comportamento é regido por leis próprias, cujo foro é a própria Bolsa e a Comissão de Valores Mobiliários. São mecanismos autônomos de freios e contrapesos no relacionamento da empresa com o mercado em que atua, com o mercado de ações, entre sócios majoritários e minoritários, níveis de governança corporativa, etc.
Mesmo nesta atual ressaca da corrupção, com algum oxigênio de seriedade, ainda assim uma estatal não deveria estar na Bolsa, e é por isso que a Petrobrás deve ser privatizada com urgência. Sobretudo num país em desenvolvimento como o Brasil, quando os interesses políticos podem eventualmente se sobrepor, como acontece agora e, portanto, conflitar com o interesse econômico dos demais acionistas e contra qualquer tentativa de governança independente da empresa.
Hoje estes fatos em curso no mundo, imprevisíveis e inevitáveis, revelam a patologia conceitual da configuração do Estado brasileiro – a Petrobrás como o símbolo de uma lógica contrariada. Como diria a ucraniana brasileira Clarice Lispector, “ver é irreversível.”
O caso fortuito da pandemia e a força maior da guerra escancaram aos brasileiros que em todos os países do mundo estes dois fatores alteraram as cadeias de suprimento globais e desencadearam o grande aumento no preço do combustível. No Brasil, entretanto, o culpado é o dono do monopólio, de nome Petrobrás – ou governo. Não é a Petrobrás da Bolsa, é o governo. E agora é ele quem deve romper as leis naturais do mercado para a salvação nacional.
A situação alarmante dispara até no mais liberal dos governantes a velha e tentadora alma keynesiana que paira sobre a maioria dos governos no mundo. Agora, para eliminar o conflito de interesses escancarado na Petrobrás, de duas, uma: privatiza e deixa o mercado resolver tudo isso, simultaneamente à tardia reforma tributária que oxigene o fluxo perverso do mercado de combustível, ou retoma a gestão da empresa, ignora a Bolsa, o mercado, os sócios da empresa e dá um salto no abismo do retrocesso da “função social da empresa”.
Esta é a encruzilhada em que nos meteram os que deram à estatal Petrobrás o monopólio dos combustíveis e a levaram para desfilar perante o mundo como se fosse a nossa Martha Rocha com duas polegadas a mais, porém bonita. Não é nossa, é deles e é feia. Deve ser privatizada já.