Dias atrás, durante entrevista a uma emissora de rádio sobre meu novo livro “Pombas e gaviões”, perguntaram-me se eu era contra o pluralismo, o multiculturalismo e a tolerância. A resposta foi um triplo “não”. Não, não e não. Cada qual com o seu devido “mas”.
O pluralismo é um dado da realidade. Ser contra o pluralismo é negar a liberdade humana e recusar o fato de que as pessoas veem a realidade desde diferentes pontos de vista e a escrutinam segundo critérios distintos. Mas… isso não significa adotar uma atitude passiva no contexto do pluralismo, como se todas as ideias fossem igualmente corretas. Não são. O pluralismo adquire valor na exata proporção em que as várias correntes de opinião conhecem seus próprios fundamentos e as marcas deixadas pelas respectivas experiências ao longo do processo histórico. Ou seja, caro leitor: pluralismo é coisa séria, não se confunde com somatório de palpites, pressupõe honestidade intelectual, firmeza de convicções, sentido de história e possibilidade de confronto retórico e político. O que no Brasil chamamos de pluralismo é uma coisa volátil como fumaça – os achismos de cada dia -soprados por meia dúzia de plantonistas da tal opinião pública. Coloque-se um microfone na boca do transeunte para ouvir o que ele pensa e pronto: parece entrevista com a Dilma. Dificilmente se recolhe uma sequência congruente de ideias. Sabem-no muito bem os pesquisadores. Não se introduza num questionário perguntas em que qualquer resposta deva guardar coerência com a precedente. O trabalho resultará perdido por inconsistência das informações obtidas.
Isso acontece por deficiência educacional e cultural, é claro, mas sob o ponto de vista político, também ocorre porque o sistema adotado pelo país serve para qualquer coisa, menos para formar e organizar correntes de opinião. Os partidos e suas condutas erráticas em torno das lamparinas do poder são a imagem mais visível desse pluralismo anarquizado que caracteriza o pensamento nacional (se é que existe algo que mereça esse nome).
O multiculturalismo é outro dado da realidade, transversal à história humana. Mas … reconhecer que convivemos com diversidades culturais, não equivale a afirmar que todas as culturas têm o mesmo valor e conferem a mesma dignidade à pessoa humana. Não! Existem culturais desrespeitosas a essa dignidade, que violentam valores fundamentais. Os relatos de Ayaan Irsi Ali, no livro “Infiel”, retratam bem o que afirmo. Essa somali, após passar por todas as violências e mutilações a que são submetidas as mulheres naquela região da África, fugiu para a Europa quando pretenderam casá-la contra sua vontade. Foi parar na Holanda, onde se destacou no grupo dos refugiados. Convivendo com eles, na condição de tradutora, percebeu que as mulheres continuavam submetidas às práticas brutais e indignas de suas clãs originais e que as autoridades holandesas, em respeito ao multiculturalismo, toleravam a situação. Ayaan reagiu contra isso, mobilizou a opinião pública e acabou tornando evidente ser intolerável que seres humanos de qualquer grupo cultural, acolhidos em território holandês, fossem submetidos a violências condenadas pela legislação do país. Foi tão bem sucedida em sua mobilização que acabou deputada. Bastaria esse exemplo, e eles se contam aos milhões, para mostrar que existem práticas culturais deploráveis, que diferentes culturas não costumam ser moralmente equivalentes e que algumas, inclusive, precisariam ser retificadas pelo muito que afrontam a vida e a dignidade da pessoa humana. Só uma percepção miserável dessa dignidade, associada a uma completa cegueira moral pode obstruir a percepção dos terríveis dramas associados a determinadas práticas culturais.
A tolerância, por fim, é um importante valor social. O convívio fraterno e solidário entre os diferentes é sua principal consequência e a igual dignidade de todos, seu maior fundamento. Mas… a tolerância não se confunde com a permissividade que costuma andar associada à sua atual concepção entre nós. A tolerância com o intolerável, a tolerância para com quem se vale dela com vistas ao seu próprio agir intolerante, deixa de ser uma virtude social para se tornar um comportamento irresponsável e condenável. É muito comum que, em nome da tolerância, a sociedade contemple de modo passivo a violência que pisa no jardim do vizinho, que invade sua casa, que o prende e o leva. Ou, no viés político, é intolerável a tolerância para com os partidos que pregam e estimulam a violência, valendo-se da democracia para agir contra a democracia.
“Pombas e gaviões” livro que debatíamos naquele programa a que me referi inicialmente, é uma obra que se dedica a promover tais advertências, prestando um serviço ao verdadeiro pluralismo (consciente e esclarecido), ao verdadeiro multiculturalismo (que recusa toda agressão à dignidade natural da pessoa humana ainda que fundada em tradições de base cultural) e à verdadeira tolerância (que sabe discernir o que pode e o que não pode ser tolerado).
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