Talvez não exista nada mais representativo das diferenças culturais entre as sociedades brasileira e americana do que o tratamento que dispensam à riqueza e à pobreza. Enquanto os americanos costumam admirar a riqueza, os brasileiros a demonizam, como se ela fosse um pecado mortal, sinônimo de má índole ou crime pregresso.
Para Max Weber, essa diferença tem origem, provavelmente, na religião. Os protestantes, notadamente os calvinistas, enxergam a riqueza como uma prova concreta da graça de Deus. Nas sociedades puritanas, portanto, a excelência profissional seria uma dádiva divina, enquanto nas sociedades católicas a visão é inversa, já que a devoção religiosa implicaria o afastamento dos assuntos mundanos, inclusive profissionais. Por outro lado, é também muito forte entre nós o velho paradigma ideológico da luta de classes, que, mesmo 20 anos depois da queda do Muro de Berlim, permanece presente como nunca por essas bandas.
Um amigo, que estudou por vários anos nos EUA durante a década de 70, conta que, certa vez, assistindo a uma cerimônia de fim de ano, no campus da universidade, deparou-se com algo inusitado. Havia na plateia dezenas de senhores e senhoras segurando placas com números os mais variados. Sem nada entender, perguntou a um colega o que era aquilo. Para sua surpresa, ficou sabendo que os números inscritos nas tais placas, expostas com orgulho, significavam a quantidade de milhões de dólares que cada um já havia feito, desde que deixara a faculdade (sugestivamente, em inglês costuma-se dizer que alguém “faz” dinheiro, ou melhor, que transforma trabalho em dinheiro, e não que “ganha” como se diz em português). No Brasil, ao contrário, muita gente é levada a esconder os bens que possui, ainda que obtidos licitamente e a troco de muito trabalho, para não despertar o preconceito alheio.
Não por acaso, nossa cultura popular impregnou-se de certa estética “pobrista”. Não há um só dia em que a TV deixe de nos brindar com programas, novelas e documentários cuja proposta é a exaltação dos hábitos e costumes da chamada “periferia”. No cinema, o processo não é muito diferente. Para a maior parte dos produtores, especialmente aqueles agraciados com gordas verbas de patrocínio estatal, que não precisam se preocupar com coisas prosaicas como retorno do investimento, a estética da miséria é bela, é “tudo de bom”. Assim é também na música (vide a onda funk), na moda e em outras manifestações culturais.
Infelizmente, essa tendência não está confinada às artes, mas se encontra disseminada nas próprias instituições e estruturas sociais. Sua face mais visível é a existência de vítimas a priori. Alguns desvios de conduta das classes ditas menos favorecidas, como a camelotagem ou a ocupação de encostas e terrenos públicos, por exemplo, são encarados de forma complacente pelas autoridades e pela própria sociedade. A mesma opinião pública que, corretamente, brada contra o mau comportamento “no andar de cima”, frequentemente justifica as faltas “no andar de baixo”, culpando abstrações como “a desigualdade”, “o sistema injusto” ou “o neoliberalismo”.
Nos mais pobres, esse sentimento pode provocar dois sintomas diferentes, mas não excludentes: o mais grave leva o cidadão a enxergar-se como vítima impotente da sociedade, causando uma certa paralisia autocomiserativa. O outro, mais visível, porém menos comum, dissemina nesses indivíduos uma indisfarçável agressividade contra o mundo à sua volta, típica dos que se julgam credores da humanidade. Paralelamente, nas pessoas com algum poder aquisitivo, porém não necessariamente ricas, manifesta-se uma sensação absurda de culpa, reféns de um conflito de consciência muitas vezes doloroso, convencidas de que seu sucesso, ainda que obtido com trabalho duro e honesto, é a razão da miséria alheia.
Essa tendência sociológica para o “pobrismo” e o “vitimismo” ao mesmo tempo desestimula a geração de riquezas (porque encaradas pela maioria como algo pecaminoso) e induz os mais pobres à ilusão assistencialista, afastando o estudo e o trabalho árduos de seus ideais de vida, colocando em seus lugares abjetas reivindicações redistributivas, nem sempre feitas de forma civilizada – vide as ações do MST e congêneres. A questão é saber até quando uma sociedade pode sobreviver a isso.
Fonte: Jornal “O Globo” – 11/03/10
Muito bom!