Dois cabos da Policia Militar do Rio de Janeiro, Fábio Magalhães e Vinicius Lima, estão presos sob a acusação de terem executado Matheus Alves dos Santos, 14 anos, em 11 de junho deste ano, no Rio de Janeiro. Além do adolescente, outros dois jovens foram levados pelos policiais para o Morro do Sumaré (zona norte do Rio) — um deles foi liberado e o outro sobreviveu após ter sido baleado. Em um diálogo gravado pela câmera da viatura, exibido pelo “Fantástico” (programa exibido pela TV Globo) em 20 de junho, os PMs conversam sobre o assassinato.
Esse não é o primeiro crime cometido por policiais neste ano. Em março, Cláudia Silva Ferreira, auxiliar de serviços gerais do Hospital Naval Marcílio Dias, foi arrastada por 250 metros, presa ao porta-malas de uma viatura, após ter sido baleada durante uma troca de tiros no Morro da Congonha, em Madureira (zona norte do Rio). Os policiais acusados do crime foram liberados da prisão temporária em abril e cumprem funções internas em seus batalhões. Em julho de 2013, o ajudante de pedreiro Amarildo de Souza foi executado por policiais da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da Rocinha.
A violência policial não é uma realidade exclusiva do Rio de Janeiro. Há relatos de crimes cometidos em outros estados brasileiros como São Paulo e Rio Grande do Sul. Em São Paulo, um motociclista foi agredido por dois polícias militares durante uma abordagem na região de Pinheiros (zona oeste da capital), no último dia 16. Os policiais envolvidos no caso foram afastados e transferidos dos seus batalhões para não influenciar nas investigações. Em um vídeo divulgado pelas redes sociais, dois policiais são flagrados agredindo um serralheiro que cumpre pena de prisão domiciliar, na Avenida Antônio de Carvalho, na zona norte de Porto Alegre.
Uma pesquisa realizada pelo Instituto Datafolha revelou que a segurança é a segunda maior preocupação dos brasileiros, depois da saúde. As regiões Norte e Centro-Oeste têm o maior índice de preocupação com a violência, 28%, seguidas pelas regiões Sul e Sudeste, 25%, e pelo Nordeste, 23%. Segundo um levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a relação entre a morte de civis e policiais foi de 21 para 1, em 2012. O FBI, por exemplo, diz que é aceitável, no máximo, a relação de 12 civis mortos para cada policial morto.
Além da violência policial, a segurança pública também sofre com a falta de infraestrutura. A superlotação foi uma das principais causas da morte de detentos no Complexo Penitenciário de Pedrinhas, em São Luís (MA), no início de 2013.
Diante desses acontecimentos recentes, o Instituto Millenium entrevistou Leandro Piquet Carneiro, pesquisador do Núcleo de Pesquisas em Políticas Públicas (NUPPs) da Universidade de São Paulo (USP). Segundo ele, a criação de mecanismos de fiscalização das ações policiais deve ser o primeiro aspecto contemplado pelas diferentes políticas de segurança pública dos estados brasileiros. “A carência principal não é na formação, mas no controle do trabalho no dia a dia das ruas”, diz ele. Para Piquet, a Lei 13.022/2014, que concede poder de polícia às guardas municipais do Brasil pode trazer benefícios e também riscos para a segurança pública. A polêmica lei – oriunda do Projeto de Lei Complementar 39/2014 – foi sancionada pela presidente no início de agosto. Leia a entrevista:
Instituto Millenium: O fato de os policias que arrastaram a auxiliar de serviços gerais Cláudia Silva Ferreira no Rio de Janeiro continuarem livres aumenta a sensação de descrença da população na polícia. Representantes da instituição policial feriram o princípio do Estado de Direito e ficaram impunes. Como fica o cidadão diante disso? Como fica a relação da população com os policiais?
Leandro Piquet Carneiro: Ocorrências como essa têm efeito devastador sobre a confiança da população na polícia. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) realizou, em 2009, uma pesquisa nacional de vitimização que indica que a confiança na polícia no estado do Rio é muito baixa: 60% das vítimas de agressão simplesmente não procuraram a polícia e a sensação de segurança no Rio de Janeiro é a segunda mais baixa do país. O desafio é enorme.
Imil: O que poderia ser feito no sentido de melhorar a qualidade do serviço policial, de prepará-los melhor para desempenhar suas funções?
Piquet: O que ocorreu dificilmente poderia ser corrigido com melhorias no sistema de formação dos policiais. Na minha avaliação, o mais importante é o trabalho de corregedoria e supervisão. É possível ter uma ótima escola de formação, um ótimo currículo e colocar tudo a perder se não houver supervisão adequada no dia a dia. Esse é o grande desfio das polícias e das guardas municipais no Brasil. A carência principal não é na formação, mas no controle do trabalho no dia a dia das ruas. Avançamos bastante no país em relação à formação: há cursos à distância patrocinados pela Secretaria Nacional de Segurança Pública, durante anos o governo federal gastou bilhões com o programa “Bolsa Formação” para policias e há convênios com as universidades. Mas nenhuma dessas ações conseguiu mudar de forma substantiva o cenário. As polícias continuam com muitas dificuldades para exercer o controle do crime, há episódio de violência policial em todo o país, operações que colocam em risco a população e mau atendimento nas delegacias, para citarmos alguns dos problemas mais debatidos nos meios de comunicação. Acho até mesmo que a formação inicial dos policiais e guardas municipais poderia ser simplificada, e o treinamento continuado e a supervisão do trabalho de rua reforçados. Mudar a formação dos policiais nas academias é relativamente mais fácil do que desenvolver nacionalmente estratégias e políticas de fomento ao controle de qualidade do trabalho das polícias. Temos que fazer a conta de “traz para frente”. Vamos começar pela rua, pelo atendimento que é prestado ao cidadão. Como em qualquer atividade humana, se não há ninguém olhando, surgem “práticas” que podem ser nocivas ao interesse coletivo. Empresas supervisionam seus vendedores de rua com metas e ligações para os clientes para saber se foram bem atendidos. Por que não podemos fazer o mesmo com os policiais e guardas?
Imil: Por outro lado, também não há um banco de dados sobre as mortes de policiais. Assim como no caso dos cidadãos, o respeito à vida dos policiais está em jogo. A morte de policiais também é um indício das péssimas condições da segurança no país. Por quê?
Piquet: É difícil fazer generalizações para o país nessa matéria. Há enormes diferenças entre os estados e regiões do Brasil. A quantidade e a qualidade das informações disponíveis e a capacidade de gestão da segurança pública varia significativamente. Não me parece correto utilizar a Polícia Militar do Rio de Janeiro ou a estrutura da segurança pública do estado como base para comparações. Participei de projetos em vários estados do Brasil e avalio que os problemas de segurança pública do Rio de Janeiro são muito particulares. São extremamente desafiadores e complexos, mas a precariedade institucional que existe no Rio nessa área não é uma realidade nacional. A Polícia Militar do Rio tem ainda um longo caminho a percorrer até atingir o padrão das polícias de Minas Gerais, São Paulo, Santa Catarina e Rio Grande do Sul no que diz respeito ao controle da corrupção, uso de dados e informações, gestão, correição e supervisão do trabalho de rua. Há vários problemas nas polícias dos estados que mencionei e estas ainda estão muito distantes de um padrão internacional de excelência, mas existem diferenças que podem ser constatadas a “olho nu” e que poderiam servir de base para alavancar mudanças. É muito difícil fazer com que um policial civil ou militar tenha interesse na opinião de especialistas acadêmicos ou consultores que não são policiais, mas eles costumam prestar atenção nas práticas de outras instituições policias.
Imil: De acordo com o último estudo da Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp), os homicídios no Brasil cresceram 7,6% de 2011 para 2012. Em sua opinião, a que se deve o aumento da violência?
Piquet: O Brasil tem um sistema de justiça criminal relativamente pequeno e pouco operante, dado o nível de criminalidade observado. Como na maioria dos países da América Latina, há mais oferta de crime do que punição. Entre os estudos empíricos que procuram responder à pergunta sobre as causas do aumento da violência é possível encontrar evidências de que a incidência de crimes no Brasil é decorrência das características socioeconômicas e das políticas de segurança pública adotadas. A pobreza e a desigualdade estão diminuindo há mais de uma década, mas as oportunidades que essas melhoras oferecem não estão sendo aproveitadas pela segurança pública. Não estamos condenados a ter altas taxas de crime porque o país é relativamente pobre ou porque é desigual. Vários estados conseguiram reduzir os homicídios de forma significativa. São Paulo e Pernambuco são dois bons exemplos. Em São Paulo, houve uma redução de mais de 70% nos homicídios desde 2000 e, em Pernambuco, a queda foi de 30% no curto espaço de seis anos, entre 2007 e 2012. São exemplos que demonstram a possibilidade de se obter “vitórias rápidas” na segurança pública. O caso mais interessante de todos, na minha avaliação, é o do Rio de Janeiro, pois apesar das enormes debilidades institucionais, o Estado foi capaz de colocar de pé uma das políticas mais inovadoras do país com as Unidades de Polícia Pacificadora. O resultado da política, medido pela redução de homicídios, tem sido significativo.
Imil: Como funciona o Sistema Único de Segurança Pública (Susp)?
Piquet: A proposta de criação do Susp foi apresentada em 2003 como o início de “uma nova etapa na história da segurança pública brasileira”. Portanto, o Susp já existe e foi criado como um programa do Ministério da Justiça com a intenção de articular as ações dos diferentes níveis de governo na área da segurança pública. Recebeu uma dotação de R$ 89,4 milhões em 2009 e de apenas R$ 2,4 milhões em 2013. Na prática, o Susp, até o momento, apoiou-se muito mais em uma retórica de cooperação do que em mecanismos baseados em incentivos. O orçamento dedicado ao programa era muito menor do que o que deveria ser para produzir uma reengenharia institucional na magnitude pretendida e, sobretudo, não havia garantias constitucionais que permitissem ao Ministério da Justiça efetivamente exercer o controle dos orçamentos dos estados nessa área, a exemplo do que ocorre nas áreas de educação e saúde. O ótimo apelo da sigla não resistiu à fragilidade de sua engenharia institucional e não gerou na prática nenhum resultado concreto de mudança institucional.
O Projeto de Lei 3.734 de 2012 [que institui o Sistema Único de Segurança Pública] recicla a proposta original e poderá superar vários de seus problemas, pois é menos impositivo no que diz respeito à forma como o governo federal, os estados e municípios deverão colaborar no desenvolvimento das políticas de segurança pública. É possível dizer que o principal foco da proposta é o compartilhamento de informações e a formação de um sistema de registro de ocorrências padronizado no país – os EUA fizeram isso na década de 1920! O projeto atual é mais realista quanto aos recursos orçamentários disponíveis, é menos intervencionista nos seus objetivos e menos centralizador na gestão. Dessa forma, avalio que poderá contribuir para que os estados e municípios preservem seus espaços próprios de atuação e avancem na troca de informações e no desenho de convênios e projetos compartilhados na segurança pública.
Imil: Como o senhor avalia a lei que concede poder de polícia aos guardas municipais? Quais serão os seus impactos na segurança pública?
Piquet: Recentemente o Congresso Nacional aprovou o Projeto de Lei Complementar 39/2014, estabelecendo que as guardas municipais terão poder de polícia e poderão ser empregadas em ações de segurança pública. Acredito que a lei trará muitos benefícios para a segurança pública e também alguns riscos que precisam ser entendidos. Espero grandes disputas políticas no processo de regulamentação e aplicação da lei, pois algumas polícias militares, como a de São Paulo, dificilmente deixarão de arguir a constitucionalidade da proposta e deverão agir no Supremo com vistas a barrar as mudanças. Em parte essa resistência reflete uma preocupação da qual partilho, de que haverá uma multiplicação de guardas municipais armados e com preparação muitas vezes insuficiente. Os riscos de erros em operações de patrulhamento e na abordagem de suspeitos são consideráveis nesse contexto.
Outro fator de preocupação é o potencial envolvimento das guardas com os grupos criminais organizados e a formação de milícias. Como são instituições mais novas e com mecanismos de controle interno e externo ainda incipientes, esses riscos são consideráveis. É claro também que parte da resistência à lei decorre apenas de interesses corporativos das polícias militares que precisam ser superados. Concordo com a afirmação de que o envolvimento das prefeituras na segurança pública é importantíssimo para a sociedade, mas precisamos entender os custos da mudança que está sendo proposta. Na prática, a prefeitura terá que contratar mais guardas municipais, gastar uma fortuna em treinamento, colocar mais câmeras de monitoramento, fechar bares, patrulhar ruas, coibir condutas indesejadas em áreas públicas; enfim, terá que vigiar, ordenar e patrulhar as ruas do município. Muitos prefeitos e prefeitas entenderão que a atuação expandida do município nas ações de ordenamento e controle urbano criarão novas oportunidades para que os guardas municipais se envolvam em atos de corrupção e violência.
Para completar, a polícia militar dirá que as ações da prefeitura são uma intromissão indevida no trabalho de policiamento, e os setores mais vocais da opinião pública muito provavelmente se pronunciarão contra as ações de ordenamento urbano. Ativistas de organizações não governamentais, defensores públicos e especialistas acadêmicos costumam enquadrar as ações de ordenamento contra carros estacionados em calçadas, contra ambulantes que vendem produtos piratas ou usuários de drogas que ocupam de forma agressiva calçadas e praças como ações “higienistas” e que “criminalizam a pobreza”. É difícil encontrar alguém disposto a fazer a conta dos malefícios que essas condutas trazem para a comunidade. Isso aconteceu no Rio de Janeiro e teve um impacto negativo no desenvolvimento das políticas locais de ordem pública. Nesse contexto, a tendência natural dos prefeitos e dos secretários municipais de ordem pública e segurança é passar a conta adiante para o governo do Estado e evitar os riscos e os gastos envolvidos nas ações de segurança pública. Os prefeitos não têm, até o momento, incentivos suficientes para se envolver com o tema, mas com a nova lei os eleitores poderão cobrar dos prefeitos um envolvimento maior com a segurança pública.
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