O Copom reduziu a Selic de 4,25% para 2,0% movido pela pertinência de uma política de estímulo monetário. O IPCA é um lag indicator da inflação das famílias, cuja demanda é determinada pela renda corrente e não pela renda permanente. A inflação passada equivale a um imposto sobre os rendimentos e as transferências. O cumprimento da Meta em 31/12 é secundário em tempos anormais. As razões básicas para adoção de política monetária estimulativa se mantêm.
Copom, em quadra de Covid-19, choques de oferta e risco de crise fiscal
Vários economistas têm opinado no sentido de que o Comitê de Política Monetária do Banco Central do Brasil (Copom) suba a taxa Selic para o intervalo entre 4,5% e 6,0% até o final do ano. Como sabemos, no ano passado, com o País em recessão, o Copom promoveu cinco reduções da Selic – 0,25% em fevereiro, 0,50% em março, 0,75% em maio, 0,75% em junho e 0,25%em agosto –, quando fixou a taxa em 2,0%, a menor da história. Assim procedeu, promovendo um “grau extraordinariamente elevado de estímulo monetário”, parágrafos 22 da reunião de maio de 2020 e 17 da reunião de janeiro passado, entre outros.
O fato é que o Copom decidiu com base no contexto real, isto é, na economia em recessão e com a pandemia crescendo, e na hipótese de que não havia pressão inflacionária. Hipótese que foi sendo alterada ao longo do tempo, conforme as evidências. O cenário atual, quanto ao setor real, é mais grave devido ao maior risco de crise fiscal com a relação Dívida/PIB superior a 90%. Cabe analisar a inflação futura. Antes, uma observação sobre a passada.
Uma análise dos crescimentos de preços ocorridos até o final do primeiro semestre de 2020 e da estrutura de pesos dos índices de preços ao consumidor (IPC’s), indicava que a “inflação verdadeira” deveria se situar em patamar superior à estimada pelos IPC’s, enquanto houvesse restrições de mobilidade necessárias ao combate à Covid-19 e outras consequências da pandemia. Um cálculo simples, com base em parâmetro estimado por Cavallo, da Universidade de Harvard, conforme resumo ao final deste texto(*), sugere que o “IPCA-Covid19”, que deveria ser alcançado pelas lentes do Copom, variou 6,9% em 2020, enquanto o índice oficial foi 4,5%. Assim, na essência, convivemos com Selic de 2% e inflação de 7%. E o mundo não ruiu. Neste ano, é provável que a relação se inverta.
Tendo, o Copom, mantido a taxa Selic em 2%, devido à situação da economia, sem investimento desde há muitos anos e em recessão devido à pandemia, quais as razões que mudariam, hoje, o ânimo do Comitê? Quais as razões se hoje o risco de crise fiscal é substancialmente maior e a subida da Selic o aumentaria mais ainda, e a tendência da redução da inflação, inflação futura, é um cenário provável?
Na análise que se segue, escolhi alguns tópicos que julgo úteis para uma melhor compreensão do tema e para a resposta à pergunta acima posta. Começo com a distinção entre Nível de Preços e Índice de Preço e o sentido da referência temporal do Modelo de Metas da Inflação. Em seguida, analiso a Política de Juros ante choques de oferta e arguo que a Renda Corrente e as Transferências (Bolsa Família, Auxílio Emergencial) determinam o consumo das famílias. E que não é certo que a subida da Selic atraia capital externo e que esta subida, movida por esse motivo, não é boa opção, pois o Brasil precisa de investimento externo aplicado em atividades úteis ao País, investimentos nas áreas de infraestrutura, energia limpa, saneamento, etc., e não dinheiro externo atraído pela Selic alta, que, na taxa real, é pura remuneração do ócio. Depois da Covid-19, cabe a volta da Selic Real zero.
Nível de Preços, IPC’s e Metas de Inflação
O Nível de Preços (NP) é simplesmente uma média ponderada dos preços de uma cesta de produtos e serviços consumidos pelas famílias, no caso do nível do consumidor. O IPC é a relação entre dois NP’s, referida a um intervalo de tempo. E a taxa de inflação, medida pelo IPCA, no intervalo de tempo entre t e t-1, é dada por (NPt – NPt-1) – 1.
Em essência, o objetivo da Política Monetária é administrar a taxa básica de juros, com a atenção voltada para as evidências e as indicações de fatores que podem mudar a trajetória de crescimento do NP daquela definida como saudável para o bom funcionamento da economia. É fundamental, portanto, discernir o que é permanente do que é transitório.
Nas economias desenvolvidas, a taxa mirada é de 2%, percentual que pode ser entendido como uma taxa anualizada, sendo livre a dimensão do período que se anualiza. No Brasil, assim como em muitos países, explicita-se o ano calendário, uma rigidez formal que serve como referência para a prestação de contas do Comitê, mas não influencia (ou não devia influenciar) qualquer decisão deste. O Conselho Monetário Nacional (CMN) define a meta e os intervalos de tolerância. No início do Regime de Metas, 07/1999, a meta foi fixada em 8% e no ano seguinte, 6%, com 2,0 pontos percentuais de tolerância para mais e para menos. Em março de 2018 o CMN definiu a meta de 3,75% para 2021 e em março de 2019 definiu a meta de 3,50% para 2022, com margem de 1,5%, em ambas.
Tendo em mente os conceitos resumidos acima, os dados apontam que, no período da pandemia, de março de 2020 até uma data futura ainda não passível de precisão, o crescimento do IPCA se caracterizou e se caracteriza por um deslocamento temporário do NP e não de uma dinâmica de aumento da taxa de crescimento do NP. Isto porque decorrente de choques de oferta, provocados pelo aumento de preços das commodities, pressões de preços agrícolas associados à desvalorização do Real de 24% em 2020 e de 7,5% neste ano, aumento de custos de produção e distribuição dos produtos devido à pandemia.
A referência temporal para o cumprimento da meta – 31/12 – é um artificialismo que não pode atrapalhar a condução escorreita da política monetária, que deve ser baseada na análise dos fatores que afetam o Nível de Preços e sua variação dinâmica, sem imposição de prazo. A fortiori, em tempos anormais. Cabe ressaltar que o processo de assimilação dos choques de oferta pode ser abreviado com política contracionista, sem grande polêmica. Procedimento de uso frequente pelo Copom, ao justificar aumento da taxa Selic para combater os “efeitos secundários” (de um aumento do preço do petróleo, ou da energia, por exemplo), não é cabível enquanto o Brasil estiver em meio à pandemia e com enorme capacidade ociosa de seus fatores de produção, com desemprego de 14%.
Isso posto, uma palavra sobre a forma como muitos analistas e jornalistas apresentam “a inflação”, o IPCA de doze meses. Sendo os índices de preços ao consumidor (IPC’s) lag indicators da inflação, usar a variação de doze meses passados, ou projetá-la um mês à frente pela substituição da primeira taxa dos últimos doze meses pela décima terceira estimada, é misleading information. Trata-se passada, inflação morta. Por exemplo, admitamos, NP de 10 em t, NP de 8 em t+1 e NP de 12 em t+13 (mês t+13 é o estimado). A comparação entre NP t+13 e NP t+1 resulta numa inflação de 50%, 30 pontos percentuais “fora da curva”.
Demanda Familiar, renda corrente e transferências, taxa de câmbio
A taxa Selic influencia as diversas taxas de juros, o crédito, a riqueza e as expectativas em direções definidas pelo conhecimento convencional. Na prática, muitas variáveis entram em jogo, como a “leitura” que os agentes econômicos fazem das atas do Copom e a formação de expectativas pela expertise concentrada nos mercados de câmbio e de títulos públicos. Numa visão geral, cabe lembrar que desde outubro de 2016 o Copom reduz a taxa Selic e afirma praticar política de estímulo monetário. No entanto, a economia se encontra em recessão ou estagnada desde 2013, com taxa de investimento decrescente, mesmo tendo, o Copom, praticado “grau extraordinariamente elevado de estímulo monetário”.
E agora, como se posiciona o Copom, ante o fato de a inflação ter contrariado suas projeções, mas, ao mesmo tempo, a capacidade ociosa continuar alta, o risco de crise fiscal ter aumentado e a pandemia ter voltado a afetar fortemente a economia?
É preciso uma análise crítica de conceitos e um exercício prospectivo. A demanda global familiar não é função da Renda Permanente, é função da Renda Corrente (RC) e das Transferências Governamentais (TG), como o Bolsa Família e o Auxílio Emergencial. Ambos, RC e TG, terão poder aquisitivo inferior ao período de maio a dezembro de 2020, não apenas pelo menor valor deste último, mas também, e sobretudo, porque a inflação ocorrida até agora equivale a um imposto de renda sobre a população objetivo do IPCA, de modo que a Renda Disponível é, neste momento, em torno de 10% menor do que no ano passado. Esse argumento é válido mesmo que o Governo tenha que continuar com o Auxílio Emergencial, cuja possibilidade de se perpetuar não é desprezível.
Em resumo, a demanda familiar já está em queda e continuará caindo e o aumento da taxa Selic não tem qualquer efeito por este canal de transmissão, devido à grande concentração de renda no Brasil. Sempre foi assim, e se agravou com a Covid-19. Juro não afeta consumo familiar no Brasil, exceto pelo canal do crédito, de pouca monta no momento atual.
Por fim, há um argumento, de vários economistas, segundo o qual uma Selic positiva em termos reais provocaria uma queda da taxa de câmbio, que reduziria os preços dos importados, melhoraria as expectavas e reduziria a inclinação da curva de juros. Ocorre que a taxa de câmbio é função de muitas variáveis e subiu devido ao aumento do risco Brasil. O mesmo pode-se dizer com as taxas de juros longas. Como na vida real não há o ceteris paribus, a leitura que a expertise faz pode ser diferente da pretendida, pode ser que se entenda que uma Selic mais alta impacta o serviço da Dívida (50% da qual é girada no curto prazo) que, por sua vez, aumenta o risco país, que aumenta a taxa de câmbio e os juros longos. De qualquer forma, não é bom admitir que o Copom é o tal façanhudo que com a Selic comanda o juro de dez anos de títulos públicos e privados, a taxa de câmbio, e tudo o mais. Talvez o BC seja mais sábio em admitir uma dose de expertise dependent, a partir do exemplo de Jerome Powell, em dezembro de 2018.
Conclusão
Por todos os argumentos apresentados, o mais provável é que a atual escalada dos preços, embora intensa e extensa, não constitua uma (ou resulte em) dinâmica inflacionária e que a demanda familiar esteja em processo de enfraquecimento de tal modo que a inflação dos meses vindouros seja inferior à verificada nos últimos meses. Também não há evidências para suprimir, no todo, o ânimo estimulativo. A economia não reagiu aos mesmos.
Entretanto, o ajuste da taxa Selic ocorrerá em trajetória inversa à ocorrida, que foi reduzida de 4,25% para 2,0%, porque é provável que a inflação esteja na faixa de 3,5% a 5,5%, intervalo de muitos períodos de tempo após a fase inicial do Real. Cabe ao Copom definir o timing do ajuste, atento à economia e à vida real, pois não se encontra encerrado em bolha.
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(*) IPCA-Covid 19. Alberto Cavallo é um economista que se dedica, há bastante tempo, a realizar e propor formas alternativas de cálculos dos índices de preços, mediante o uso de big data. Nesse ambiente de pandemia, divulgou o artigo Inflation with covid consumption baskets, na série Working Paper do NBEA-USA, em julho de 2020. Os índices Covid-19 são agregados a partir do nível de Grupo e calculados com os dados de cada País, com os pesos estimados pelo autor. Essas estimativas de pesos Covid-19 consistem na atualização dos pesos originais mediante a aplicação dos valores relativos de cada grupo obtidos dos dados dos cartões de crédito e débito americanos. Assim, Cavallo “atualizou” as estruturas de pesos (anteriores à Covid-19) para a era Covid-19, mediante a variação do valor de cada grupo expressa nesses dados dos cartões de crédito. Para os EU o Índice Covid-19 foi 0,95%, enquanto que o CPI foi 0,13%. E, para o Brasil, respectivamente, 2,53% e 1,65%. As explicações dessas relações são muito simples: maiores pesos em grupos que tiveram maiores variações de preços. Aplicando essa relação encontra-se o IPCA Covid-19 de 2020 igual a 6,9%.
Autor: Francisco de Assis Moura de Melo
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