A imprensa paranaense está escrevendo um belo capítulo na história do jornalismo de qualidade, um exemplo a ser seguido por todos nós. A investigação ética é sempre a melhor aliada da cidadania. Foi o que se viu na série de reportagens do jornal Gazeta do Povo e da Rede Paranaense de Comunicação (RPC-TV), veiculadas em meados de março. Os repórteres Katia Brembatti, Karlos Kohlbach, James Alberti e Gabriel Tabatcheik devassaram uma poderosa máquina de corrupção que, há anos, domina o Poder Legislativo do Paraná.
A Assembleia Legislativa do Paraná escondeu 56,7% de seus atos em diários avulsos, inacessíveis ao público, muitos sem numeração e publicados em datas aleatórias, desconectadas da época dos fatos publicados. A prática encobria uma impressionante máfia administrativa. Os repórteres tiveram acesso a mais de 700 diários editados entre 1998 e 2009 e durante dois anos cruzaram o conteúdo das publicações. Não foi dossiê encaminhado à redação. Foi um formidável investimento em jornalismo investigativo. Essa aposta na denúncia bem fundamentada revelou situações como a da agricultora Jermine Leal e sua filha Vanilda Leal, moradoras em casas pobres, de chão batido, na área rural de Cerro Azul, a 100 quilômetros de Curitiba. Sobrevivem graças ao Bolsa-Família. Mas na documentação da Assembleia Legislativa do Paraná apareciam como beneficiárias de R$ 1,6 milhão ao longo de cinco anos, dinheiro que nunca viram. O exemplo é só uma casquinha de noz num mar de podridão, corrupção e cinismo.
Os promotores do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) já comprovaram que o esquema de corrupção montado dentro da Assembleia Legislativa desviou pelo menos R$ 26 milhões dos cofres públicos. Esse valor equivale aos depósitos feitos pela Casa na conta bancária de 17 funcionários fantasmas. A estimativa dos promotores, no entanto, é de que o desvio total chegue a R$ 100 milhões. Até o momento, 18 pessoas foram presas por conexão com o esquema criminoso.
Diante do quadro levantado pela série de reportagens, a seção paranaense da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-PR) lançou, há três semanas, o movimento “O Paraná que Queremos”, que em carta aberta conclama a sociedade paranaense a pedir transparência no Legislativo e a punição dos envolvidos nas denúncias. A conclamação surtiu efeito. O movimento chegou até agora à marca de 142 adesões de entidades ? Universidade Federal do Paraná (UFPR), Federação das Indústrias do Estado do Paraná (Fiep), Federação do Comércio do Paraná (Fecomércio), Associação Paranaense dos Juízes Federais (Apajufe), Sindicato das Escolas Particulares do Paraná (Sinepe) ?, 136 de empresas e 152 de pessoas físicas. O movimento, um autêntico grito da cidadania, mostra que a sociedade reage positivamente às denúncias da imprensa.
A Assembleia Legislativa do Paraná, numa reação recorrente em situações semelhantes, classificou como ilegal e antidemocrática a campanha “O Paraná que Queremos”. Em carta intitulada Por um Paraná justo, legal e ordeiro, entregue à OAB-PR, o procurador do Legislativo Marco Antonio Marconcin afirma que os anúncios de adesões publicados pela OAB-PR na Gazeta do Povo e exibidos na RPCTV ferem “o princípio da legalidade e respeito às instituições no marco da democracia constitucional”. A carta da Assembleia afirma que a campanha incita à desordem e “compõe um chamamento temerário de quebra do respeito devido às instituições legais; configurando incitamento à comoção social e, no limite, violação da ordem pública por afronta à legalidade democrática, ao investir de forma generalizada contra a Assembleia Legislativa, no exercício constitucional do Poder Legislativo Estadual”. Marconcin diz ainda que a OAB não observa o “devido processo legal” e faz prejulgamento da “generalidade dos deputados, dos servidores e da instituição parlamentar”. É o comportamento de sempre. “Legalidade” versus ética. Presunção de inocência versus transparência nos assuntos públicos. Como se fosse possível construir o Estado de Direito de costas para os valores éticos.
Armação da imprensa. Distorção da mídia. Patrulhamento de jornalista. Quantas vezes, caro leitor, você registrou essas reações nas páginas dos jornais? Inúmeras, estou certo. Elas estão contidas, frequentemente, em declarações de políticos apanhados com a boca na botija, no constrangimento de homens públicos obsessivamente ocupados com a privatização do dinheiro público e no cinismo dos que usam a “legalidade” como escudo protetor para a prática da delinquência. Todos, independentemente da contundência de suas impressões digitais, negam tudo. Procuram, invariavelmente, um bode expiatório para justificar seus delitos. A culpa é da imprensa! A acusação é uma manifestação explícita de desprezo pela verdade e de desrespeito ao cidadão.
Registro, entusiasmado, o bom exemplo dos jornalistas do Paraná: uma denúncia sólida e irrefutável. Complementa-se o dever da denúncia com o que eu chamaria de jornalismo de buldogues. Precisamos, todos, ser a memória da cidadania. Seria bom, em período eleitoral, relembrar o nome dos deputados e funcionários que participaram ativamente dos desmandos criminosos.
É dever ético da imprensa promover uma ampla conscientização popular da relevância que os cargos públicos têm e da importância de que pessoas absolutamente idôneas os ocupem. Os programas eleitorais vendem uma bela embalagem, mas, de fato, são vazios de conteúdo. Nós, jornalistas, devemos ser o contraponto a essa tendência. Cabe-nos a missão de desnudar o que o marketing esconde.
Fonte: Jornal “O Estado de S.Paulo” – 31/05/10
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