Nos termos do artigo 17, III, da Constituição Federal, a prestação de contas à Justiça Eleitoral traduz dever jurídico fundamental para regular funcionamento político-partidário. Eventual descumprimento da regra legal configura ilicitude em grau máximo, tisnando a legitimidade das urnas. Objetivamente, a fraude na prestação de contas de campanhas eleitorais traduz vício político de raiz, maculando a investidura eletiva por meio da obtenção inconstitucional do mandato popular. Ora, se o candidato nem sequer presta contas fidedignas, é porque não tem condições mínimas de exercer com correção, lisura e caráter a prerrogativa de bem representar o povo brasileiro.
[su_quote]Existe, no Brasil, a ideia de que a vitória nas urnas absolve descaminhos eleitorais[/su_quote]
Ocorre que os fatos estão aí e falam por si sós. Os recentes escândalos políticos estão a mostrar que algumas contas de campanha viraram uma grande mentira, colocando em xeque a verdade das urnas. O uso e abuso de dinheiro ilícito parece ser uma fórmula mágica de acesso ao poder. Tudo parece possível em um agir desviante que transforma a lei em pó. Para refinar a traficância, certas mentes iluminadas resolveram embrulhar propina em donativos de campanha, como se a nova roupagem pudesse esconder sua natureza ilegal.
A ousadia delitiva impressiona. A manobra, em sua crueza, demonstra que alguns políticos e partidos desprezam abertamente a autoridade do Poder Judiciário, incorrendo – uma vez comprovado o delito – no tipo penal do artigo 350 do Código Eleitoral. Aqui, não faço juízo de valor; concentro-me na análise dos fatos em tese e nas suas potenciais consequências jurídicas. Sobre o ponto, aliás, as sanções estão previstas em lei.
Exemplificativamente, o artigo 28, III, da Lei 9.096/95 estabeleceu a prestação indevida de contas à Justiça Eleitoral como causa de cancelamento do registro partidário. Ou seja, os partidos políticos têm o dever impostergável de cumprir a legalidade vigente com retidão e clareza. Por assim ser, um partido que promova ilícitos não dispõe de legitimidade constitucional para atuar na cena política brasileira. A questão, antes de jurídica, é de decoro democrático.
Adicionalmente, é oportuno lembrar que o egrégio Supremo Tribunal Federal (STF), em julgamento histórico, veio acolher o entendimento de que o mandato pertence ao partido, ressaltando que a filiação partidária é um requisito eleitoral obrigatório e inescapável. Logo, ninguém é eleito sem partido e, sem eleitos, o partido vira um ninguém. Consequentemente, para o legítimo acesso ao poder, cabe ao partido e também ao candidato cumprirem honestamente com os pressupostos da legalidade positiva. É possível, assim, presumir que a ocorrência de fraude nas contas eleitorais levaria consigo todos os candidatos eleitos que, direta ou indiretamente, tenham sido beneficiados com uma campanha eleitoral viciada.
Infelizmente, existe, no Brasil, a ideia de que a vitória nas urnas absolve descaminhos eleitorais. A premissa é falsa do início ao fim. Em uma democracia autêntica, o dever de probidade no processo político vai do primeiro dia da campanha à última hora do mandato. Nesse ínterim, o homem público deve ser um exemplo de exação, honra e decência. Eventual descumprimento dos valores morais da democracia, tanto pela violação da lei, como pela quebra de imperativos éticos da política, autorizam a utilização dos instrumentos constitucionais de preservação da inegociável dignidade das instituições.
Sabidamente, a vida pública, quando bem exercida, é muito mais ônus do que bônus. É lição antiga que a riqueza política não é material. Agora, de um tempo para cá, parece que milagres podem ocorrer. Será obra de um messias bondoso ou serão generosas propinas que, como as chuvas, caem do céu?
Fonte: O Estado de Minas, 22/04/2015.
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