Nos últimos 12 meses, o déficit público foi de 8% do PIB. Teremos que lidar no futuro com uma situação na qual provavelmente o número de aposentados irá aumentar a uma velocidade maior que a do crescimento da economia. Além disso, por razões demográficas, o gasto com saúde deverá aumentar acima do PIB e o gasto em educação, hoje de 6% do PIB, teria de aumentar, por lei, para 10% do PIB em 10 anos. Em qualquer país com certa seriedade, lidando com esses desafios, caberia esperar um esforço de convergência política para minimizar a intensidade dos desequilíbrios. Aqui, não apenas não atacamos os problemas, como os criamos onde não existem.
A decisão da Câmara de Deputados acerca do fator previdenciário irá aumentar o valor da aposentadoria de quem se aposenta por tempo de contribuição, nas condições beneficiadas pela emenda aprovada, em 18% no caso dos homens e 43 % no das mulheres. Considerando a participação respectiva por gênero (maior para os homens) no conjunto dessas aposentadorias, isso corresponde a um aumento ponderado de 26%. Como a despesa do INSS este ano será da ordem de 7,4% do PIB e a despesa por tempo de contribuição representa 30% do gasto do INSS, aproximadamente, quando o conjunto atual de aposentados for substituído pela nova geração de aposentados, o “plus” será de pelo menos 0,26 x 0,30 x 7,4 = 0,6% do PIB.
[su_quote]Em três anos, as aposentadorias represadas voltarão a aumentar e serão muito mais caras [/su_quote]
Não é só isso. O impacto poderá ser maior. Pensemos no seguinte. Imaginemos uma mulher com média contributiva de R$ 2.000. Se essa pessoa começou a contribuir aos 18 anos, aos 48 anos terá um fator em torno de 0,55. Ou seja, a sua aposentadoria será de 0,55 x R$ 2.000 = R$ 1.100.
Na cabeça dessa pessoa, ela está “perdendo” R$ 900. Falso: ela está ganhando R$ 1.100. Se vivesse na Espanha, nos EUA ou na Bolívia, o valor que aos 48 anos levaria para ir para casa seria zero. Pelas regras atuais, o Brasil permite a essa pessoa ganhar R$ 1.100 aos 48 anos, o que já revela a generosidade das regras previdenciárias no Brasil. Pois bem, o que a Câmara, em um momento de rara infelicidade, acaba de aprovar?
Que esta pessoa, se esperar mais 3 anos, com 51 anos e meio de idade e 33 anos e meio de contribuição, poderá ganhar R$ 2.000 de aposentadoria. Cabe imaginar que as agências de risco levarão esse disparate – pois é disso que se trata – em conta ao avaliar o rating do Brasil. É só pensar no que aconteceria se a Grécia adotasse uma medida desse gênero. O que o mundo diria? “Esses gregos estão de brincadeira!”. É o que dirão de nós no futuro.
É irrelevante que o mercado tenha tido uma reação inicialmente morna. Quando a Grécia estava tomando as medidas que a levaram à tragédia atual, o mercado também estava fazendo a festa e comemorando a adesão do país ao euro. Anos depois, trataria os gregos como levianos, mas todas as marcas da irresponsabilidade já estavam lá quando o mercado saudou a adesão ao euro, sem que houvesse condições adequadas para isso.
A oposição assiste a esse populismo previdenciário se congratulando por fazer o governo “sangrar”. Ela está sendo cega, uma vez que o incentivo para, nos próximos dois ou três anos, com essa medida, ocorrer um pequeno adiamento das aposentadorias, será enorme. Essa conta estourará na mão de Aécio Neves se ele ganhar as eleições daqui a três anos: as aposentadorias, inicialmente represadas, voltarão a aumentar – e serão muito mais caras.
Além disso, a medida foi aprovada pela pressão dos aposentados prejudicados pelo fator, que não são afetados por ela. O segundo ato desse drama será pleitear condições isonômicas dos aposentados atuais para com os futuros aposentados. Não faltarão parlamentares para defender essa lógica. Se antes de 2000 não havia fator e depois de 2015 também não, “é uma injustiça prejudicar a geração sanduíche”, dirão eles. Colocamos para funcionar uma fábrica de esqueletos.
Há alguns meses, relendo anotações antigas à procura de uma epígrafe para meu próximo livro, deparei com esta amarga reflexão de Elisabeth Bishop, que morou no Brasil nos anos 60 e inicialmente apaixonou-se pelo país. Depois, desiludida, ela escreveu estas palavras lapidárias: “Como país, acho que o Brasil não tem saída – não é trágico, como o México, não; é apenas letárgico, egoísta, autocomplacente, meio maluco. O país perdeu a inteligência e a consciência moral. Não há princípio que não seja desmentido, nem instituição que não seja escarnecida. Já não se crê na honestidade dos homens públicos. A classe média abate-se progressivamente na imbecilidade e na inércia. Os serviços públicos abandonados a uma rotina dormente. O desprezo pelas ideias aumenta a cada dia. A ignorância pesa sobre o povo como um nevoeiro. A intriga política alastra-se por sobre a violência e a sonolência enfastiada do país. Não é uma existência; é uma expiação”.
Cinquenta anos depois, foi inevitável relembrar essas palavras sombrias diante do que a Câmara acaba de aprovar. Como Elisabeth Bishop, vendo tanto descaso com o futuro, tive vergonha do Brasil.
Fonte: Valor Econômico, 19/05/2015.
Tem uma questão previdenciária, que jamais ouvi alguém analisar e comentar, com relação aos demais institutos de previdência, como e qual o desempenho da gestão do capital dos contribuintes?