Um famoso esboço de Pablo Picasso retrata Don Quixote de la Mancha como um colosso a cavalo, mirando os moinhos de vento abaixo dele, na companhia de seu fiel escudeiro, Sancho Panza. No romance espanhol do século XVII, de Miguel de Cervantes, que inspirou o artista, os moinhos de vento eram naturalmente em tamanho real, e o Quixote, depois de mergulhar em muitos livros sobre cavalaria, luta com eles em sua busca alucinada para trazer justiça ao mundo.
Lembrei daquele desenho ao ler, mais uma vez, as bravatas de Donald Trump contra seus inimigos imaginários no comércio. Não, não é exagero fazer uma comparação entre o presidente Trump e Don Quixote – exceto pelo idealismo do Cavaleiro de la Mancha, inexistente em Trump. Ambos enxergam inimigos ilusórios, decidem combatê-los a todo custo e depois reivindicam vitória ao final de cada batalha.
Uma das muitas características inquietantes de Donald Trump é sua profunda antipatia pela doutrina do livre comércio. Já perdi a conta de quantos artigos escrevi aqui neste espaço sobre o empedernido protecionismo/mercantilismo do presidente norte-americano, que os liberais de lá, com muita propriedade, apelidaram de “Tariff Man” e “Protectionist-in-Chief”.
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Se a guerra comercial idioticamente declarada e executada por Trump contra a China não mostra sinais de que vai acabar, recentemente o presidente americano decidiu expandir o teatro de operações para outros lugares, mais especificamente Brasil e Argentina.
Trump diz que está impondo tarifas sobre aço e alumínio desses dois países porque eles adotaram uma política de “desvalorização competitiva da moeda”, ou seja, reduziram artificialmente o valor do real e do peso, respectivamente, para ganhar uma vantagem injusta para suas exportações, em prejuízo dos agricultores dos EUA. É muito moinho de vento para uma cabeça só…
Pelo menos no caso do Brasil, esse diagnóstico não poderia ser mais equivocado. O movimento do câmbio por aqui responde a fenômenos e fatos exclusivamente de mercado, principalmente a redução da taxa de juros sobre os títulos públicos e o aumento do déficit em transações correntes, sem esquecer das incertezas econômicas geradas pela própria guerra comercial de Trump com a China. Ademais, ao contrário do que alega o presidente americano, as únicas ações do governo brasileiro no mercado de câmbio ultimamente foram no sentido oposto ao imaginado pelo “Tariff-Man” – tentar frear a desvalorização do real, através de vários leilões de venda de dólares pelo Banco Central.
Ao fim e ao cabo, a política comercial de Trump se baseia na noção ilusória de que uma taxa de câmbio mais baixa pode conferir uma vantagem sustentável na promoção das exportações – e que exportar mais e importar menos é a chave para o sucesso econômico. Nada poderia ser mais falso, como demonstram vários exemplos mundo afora, como a malfadada política de substituição de importações aplicada no Brasil desde priscas eras e até hoje defendida por inúmeros economistas (ditos) desenvolvimentistas em Pindorama.
Para milhões de trabalhadores brasileiros, desde pelo menos os anos 70 do século passado, essa política de desvalorização intencional da moeda tornou a vida muito mais difícil. Uma moeda mais fraca não apenas torna as viagens ao exterior mais caras, mas também leva a preços mais altos para uma variedade de bens que se destacam nos orçamentos familiares – como roupas, pão, frutas e legumes frescos. Isso afeta especialmente os mais pobres. Preços mais altos para esses os consumidores significam salários reais mais baixos.
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Mas não é só. Uma moeda fraca também significa custos de produção mais altos para os produtores. Mais da metade dos bens importados no Brasil não são para consumo, mas para produção e investimento: matérias-primas, insumos intermediários, máquinas e equipamentos. Um real desvalorizado geralmente significa um preço mais alto para insumos cruciais. Quem paga o preço no final? Os consumidores, claro.
A depreciação da moeda afeta negativamente os “termos de troca” do país com o resto do mundo. Isso determina, por exemplo, quanto podemos importar da China ou dos EUA para cada dólar que exportamos para eles. Os defensores de uma moeda artificialmente mais fraca querem que as pessoas acreditem que nos tornamos de alguma forma mais ricos – e o comércio “mais justo” -, se pudermos comprar apenas 100 pares de sapatos da China, em vez de 150, por cada tonelada de carne que nós os vendemos.
De fato, as depreciações cambiais podem proporcionar um impulso de curto prazo para a produção interna, mas esse efeito é rapidamente dissipado pelo aumento da inflação e pelo declínio do consumo, sem impacto a longo prazo nos índices de crescimento do PIB.