A encrenca armada a pretexto de guarnecer “direitos humanos” se me apresenta de particular gravidade, quiçá a maior para o governo que vai chegando ao seu termo. Isto sem falar em seus aspectos enigmáticos. Formalizado sob a forma de decreto, que só o presidente da República pode expedir, referendado por 28 ministros, dois terços da totalidade deles, estampado no Diário Oficial, é obra exclusiva do governo Luiz Inácio, no começo, no meio e na finalidade.
Se esse monumento de insânia fosse construído maquiavelicamente por adversários radicais, poder-se-ia compreender, pois não é impossível que o prélio das ambições exceda os limites razoáveis da disputa. Mas, que mais de dois terços dos ministros do presidente, por ele escolhidos livremente e livremente demissíveis, fossem os autores da peça teratológica, já seria de corar um frade de pedra; mas o decreto é, por definição, ato privativo do presidente e, sendo do presidente, como é, seria inconcebível e inacreditável, a menos estivesse a prevalecer uma lógica esquizofrênica; pois bem, e talvez devesse dizer-se “pois mal”, isso aconteceu. Retire-se desse corpo a assinatura do presidente e o decreto não existiria, poderia ser projeto de decreto, mas decreto não seria, nem poderia sê-lo, porque só ele e exclusivamente ele pode baixar o que na terminologia jurídica e na linguagem da Constituição se denomina decreto; por maiores e eminentes sejam os poderes do papa Bento XVI ou da rainha Elizabeth, do presidente Obama ou do imperador Hiroito, nenhum deles pode fazer o que só o presidente brasileiro pode fazer e fez. E não fez às escondidas, saliente-se ainda uma vez, mas à luz da mais intensa publicidade. Em outras palavras, trata-se de fato objetivo, preciso nos termos e certo na data em que foi lançado ao mundo. O Diário Oficial é de 21 de dezembro passado.Essa fantasmagórica fantasmagoria da qual o presidente só iria ocupar-se em abril, como declarado ao viajar para aprazível vilegiatura na Bahia, contrariadamente, teve de enfrentar em janeiro, e irritado com a alegada troca de insultos ministeriais. Parece que o presidente continua a não ler, pois por parte dos ministros que participaram do bate-barba, até onde sei, nenhum deles dirigiu “insultos” a outro. Com isso, o presidente pretendeu equiparar os ministros envolvidos na querela? Em nenhum momento notei a recíproca faina insultuosa aos ministros atribuída por seu chefe. Limito-me a registrar o fato que me parece estranho.
Ao cabo, o presidente, em janeiro, e não em abril como anunciara, teve de engolir o indigesto decreto, gratuitamente lançado por ele mesmo, embora não o tenha lido, nem o tenha lido sua candidata, que só teria cuidado de seus aspectos legais, assertiva que a mim parece inexata, porque o decreto por ofender frontalmente cláusula constitucional, não pode ter sido isento de ilegalidades; em suas 92 páginas o projetado é uma verdadeira anticonstituição, e a inconstitucionalidade é a mais conspícua das ilegalidades.
E mais uma vez me pergunto o que pretende o sagacíssimo presidente Luiz Inácio. Não tenho pretensão de penetrar nos arcanos do pensamento alheio. Por que e para que criar um problema no entardecer de seu governo que ele, ele e não outro teve de engolir e dizer que o dito era como se não tivesse sido dito?
O que me parece clara é a similitude entre o programa-decreto ou decreto-programa com a doutrina de caudilho da Venezuela. É assustador. Não me cheira bem.
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O horror no Haiti excedeu as imaginárias reservas do coração humano. Fico nessas pobres palavras.
(“Zero Hora” – 18/01/2010)
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