Vamos repetir: todo esse zunzunzum em torno da troca de comando no Banco Central (BC) simplesmente não existiria se o BC tivesse sua autonomia fixada em lei. Reparem: Henrique Meirelles passou sete anos e meio construindo a credibilidade, dele e da instituição, com sucesso. Consolidou a convicção de que o BC determinava a taxa de juros conforme as estritas regras técnicas e a prática do regime de metas de inflação. Mesmo assim, quando o BC interrompeu inesperadamente o ciclo de alta de juros, em setembro deste ano, surgiram dúvidas sérias, inclusive aqui levantadas por este colunista: parecia que a política – a disputa eleitoral, a necessidade de não atrapalhar a candidatura de Dilma Rousseff – havia sido mais determinante na posição do Banco Central.
Dizíamos, então: se a autonomia do BC estivesse na lei, ninguém desconfiaria de nada. Com mandatos fixos, em períodos diferentes do presidente da República, os diretores do Banco Central decidiriam sem as pressões políticas do momento.
Hoje, Alexandre Tombini, escolhido por Dilma para a presidência do BC, disse que a presidente eleita afirmou com todas as letras: “Não existe meia autonomia.” Ou seja, Dilma Rousseff garantiu que fará como FHC e Lula, que concederam plena autonomia à instituição.
Está bem. Mas, como apontamos aqui na semana passada, há dois movimentos contrários em curso. De um lado, a inflação está em alta forte, correndo bem acima da meta, num ambiente de economia aquecida, o que leva, seguindo a lógica do regime de metas, à alta dos juros. Um BC autônomo faria isso sem problemas, sem temer ruídos políticos.
De outro lado, políticos e economistas ditos desenvolvimentistas, no entorno da presidente eleita, diziam claramente que a estratégia estava mudando. Em vez da ortodoxia monetária, a nova administração faria o contrário: reduziria a taxa básica de juros, o que permitiria uma substancial economia na despesa financeira do governo. Com o dinheiro que sobrasse, seriam feitos investimentos de modo a ampliar a capacidade produtiva do País. Com maior capacidade para atender à demanda, reduz-se a possibilidade de inflação, tal é a tese.
Parecia que a presidente eleita, economista de formação, sempre alinhada a esse pensamento, tentaria a mudança. A substituição de Henrique Meirelles pareceu um movimento nessa direção. Ele representaria um BC “muito” autônomo.
Designado o núcleo da nova equipe econômica, o que vemos? Firmes declarações de fé na… ortodoxia monetária e fiscal. Tombini diz que terá autonomia. Guido Mantega, na Fazenda, que vai fazer um corte de gastos “com mão pesada”. E Miriam Belchior, escolhida ministra do Planejamento, que o governo vai fazer mais gastando menos.
O mercado, aqui tomado no sentido amplo – incluindo, claro, o pessoal do mercado financeiro, mas também o universo dos agentes econômicos, do empresário que decide produzir e vender ao consumidor que decide comprar, com todos os intermediários -, esse mercado gostou. Pelo menos é o que se deduz das manifestações divulgadas na imprensa e do que a gente ouve aqui e ali.
O pessoal tem medo da inflação. E isso é bom.
Mas o mercado acreditou nas declarações? Com um pé atrás. Quer ver para crer. Esperam-se os testes. No caso de Mantega, demora um pouco para saber se a mão dele vai mesmo pesar. Será preciso avaliar o andamento dos gastos mês a mês.
No caso de Tombini, vai acontecer logo. Em janeiro tem reunião do Comitê de Política Monetária do BC (Copom), já com a nova diretoria. Os dados e as circunstâncias estarão indicando a necessidade de alta de juros para conter a escalada inflacionária.
Eis o quadro: primeira reunião do Banco Central de Dilma, juros subindo. E aí?
De novo, se o BC fosse autônomo na lei, não haveria o teste. E reparem na ironia: é bem capaz de o BC de Tombini ter de elevar os juros só para demonstrar ao mercado sua fidelidade ao regime de metas. (Meirelles elevou os juros nas suas duas primeiras reuniões em 2003, e até hoje muita gente acha que fez isso só para firmar autoridade.)
Com autonomia legal, o Copom de janeiro próximo poderia perfeitamente não elevar os juros e ninguém desconfiaria ter sido uma ordem de Dilma.
De fato, a história do regime de metas mostra isto: bancos centrais independentes na lei praticam juros mais baixos e conseguem inflação menor.
Ora, dadas essas circunstâncias e considerando que Dilma diz garantir a autonomia do Banco Central, por que não envia projeto de lei ao Congresso fixando essa regra?
Especulação: por que no fundo, no fundo, não acredita muito nisso. Apoia a autonomia porque o momento sugere que essa é a melhor fala para hoje. Está querendo nos dizer que, se o BC não subir os juros, foi por escolha autônoma.
Mas, não aceitando a legislação, indica também que quer guardar na manga a carta da intervenção e deixar essa perspectiva sobre os diretores do Copom. A gente percebe isso, por isso todo esse debate e essa desconfiança.
Má vontade com o governo?
Não, apenas realismo. O mesmo Guido Mantega, logo depois de ter profissão de fé ortodoxa, voltou ao normal em entrevista ao jornal Valor de sexta-feira. Disse que a inflação é circunstancial, provocada apenas por alimentos e combustível; que não há excesso de demanda e que não precisa subir os juros, que já são elevados demais. E ele foi o primeiro ministro escolhido por Dilma.
Aliás, perguntaram a Mantega se ele apoiaria uma lei determinando que o gasto público crescerá menos que o Produto Interno Bruto (PIB). Disse que não precisa. Claro, pela mesma razão por que não colocam na lei a autonomia do BC.
A ver.
Fonte: O Estado de S. Paulo, 29/11/2010
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