Escrevo numa quarta-feira, 13, uma história que você está lendo hoje, quarta-feira 20, sobre a morte jamais conjeturada do 35º presidente dos Estados Unidos — John F. Kennedy — ocorrida no dia 22 de novembro de 1963, nesta próxima sexta-feira.
Só nós, humanos, combinamos com tanta desenvoltura o presente com um passado tão eloquentemente marcado por 50 anos. Meio século de um tempo que, visto da perspectiva deste mundo no qual as tragédias são diárias e o terrorismo político e a hipocrisia são moeda corrente, ele nos parece distante e até mesmo incompreensível. De fato, para quem como eu, aprendeu com o pai que um homem só deve ter uma caneta, um relógio e uma mulher, é um tanto complicado viver num mundo de escolhas contínuas e obrigatórias.
Sou do tempo das coisas “definitivas”. Confesso minha dificuldade em viver numa época onde nada deve durar muito. E o assassinato de JFK (como o suicídio de Vargas e a renúncia de Jânio Quadros) liquidou uma ilusão de firmeza e de estabilidade em que eu acreditava. Esses eventos roubaram-me o sentido deste “definitivo” e me obrigaram a desconfiar do mundo evitando tanto o cinismo e a indiferença quanto o terrorismo implícito na tese de que os fins justificam os meios e que inocentes podem pagar pelos culpados.
Nascido em 1936 em Niterói, eu jamais poderia imaginar que estaria na Harvard na qual um Jack Kennedy aventureiro erótico e milionário fora aluno quando ele, presidente dos Estados Unidos, foi assassinado naquele 22 de novembro de 1963. Um novembro que me iniciou nos tenebrosos invernos do Hemisfério Norte. Um frio desgraçado a competir com os encantos da neve caindo em flocos (e não em pingos ou gotas) num silêncio bizarro para os acostumados ao barulho das chuvas tropicais.
Estava estudando mitos indígenas e lendo “O pensamento selvagem”, de Claude Lévi-Strauss, livro que tinha acabado de ser publicado e que eu havia comprado no dia 8 de outubro, quando soube do assassinato do presidente Kennedy em Dallas, Texas!
Deixei o estudo do mito que contava a origem do fogo para pensar nas causas de um assassinato impensável que fazia pensar numa história ocidental marcada por confrontos e conflitos.
Num átimo eu fui das tribos sem escrita para testemunhar uma histórica covardia terrorista. Fui direto para um Texas que havia visto mil vezes no cinema de Hollywood, o qual, subitamente, me parecia incrivelmente verdadeiro. “Eles se matam mesmo”, disse um sujeito dentro de mim. “E matam presidentes”, repetiu.
Os assassinatos de presidentes dos Estados Unidos começam com Lincoln, em 1865; passam por James Garfield e William McKinley, para terminar com Kennedy. Tirando as 15 tentativas frustradas de assassinatos de outros presidentes, inclusive de Nixon, Reagan, Carter, George Bush, Clinton e Obama, todos foram mortos (ou ameaçados) por armas de fogo e em cenários públicos.
Uma revolucionária democracia igualitária e competitiva mudaria as regras do governo, liquidando o direito divino dos reis que eram deuses ou a eles se aparentavam ou neles se inspiravam. Mas ela não transpôs a dimensão dramática do papel do eleito, a qual promove o retorno de ritos de legitimação, entronização, sacralização e exaltação do cargo porque, sem eles, não haveria a visão do sistema como uma entidade concreta que o líder deve manifestar. Mesmo rotineiramente elegendo uma “pessoa comum” pela vontade popular, o conjunto concebido como sendo fabricado por indivíduos-cidadãos independentes tem que se cimentar como um todo.
E é o presidente que traz de volta na sua figura a coletividade feita de indivíduos como um todo cimentado e mapeado. Em certos momentos, senão sempre, o presidente é o país e o país é o presidente. Há uma sincronia entre eles. A morte do Deus-Rei foi alvo de um ensaio clássico de Evans-Pritchard, antropólogo de Oxford. Ela era legítima, e o rei, sacrificado, se o reino sofria de fome, seca e de outras pragas.
No governo JFK os Estados Unidos abriram a velha ferida dos direitos civis ao lado de uma cruzada contra o comunismo. A crise cubana acentuou o que foi lido como uma fraqueza de um Kennedy um tanto marginal às elites políticas americanas como católico, milionário, familístico e “irlandês” (seu irmão, Robert Kennedy, que foi igualmente assassinado por outro louco, em junho de 1968, quando candidato a presidente, era seu ministro da Justiça). É neste cenário que surge um Lee Oswald , como um ator catártico, motivado — como um louco no melhor estilo do doutor Strangelove — a tudo resolver. Uma sincronia fechada entre o presidente e a dualidade radical de uma época permitiu atribuir a problemas ideológicos até hoje insolúveis uma máscara pessoal. Eles assumiram a cara de JFK, tal como Lee Oswald mediunizou um desejo para mim claríssimo nos Estados Unidos de 1963. E assim os loucos matam presidentes, e fazem com que a presidência fique ainda mais firme, e a democracia, mais forte e esperançosa de si mesma.
Foi mais ou menos isso que vivi e pensei naqueles dias de dúvida e dor.
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