Distribuição de benefícios aos eleitores é uma irregularidade recorrente em época de campanha eleitoral. Exemplo disso, os centros sociais mantidos por candidatos no Rio de Janeiro se multiplicam a cada pleito. Embora muitos sejam lacrados pela Justiça, os políticos envolvidos continuam em campanha e alguns até se elegem, restando ao eleitor uma sensação de impunidade.
Professora da Fundação Getúlio Vargas (FGV Direito-Rio) e ex-procuradora regional eleitoral no Rio de Janeiro, Silvana Batini acredita que as irregularidades se tornam recorrentes porque a lei não está sendo aplicada de forma rigorosa. “Eles não são punidos da forma exemplar como deveriam ser. O candidato que tiver um centro social deveria ser alijado do pleito. Mas isso não está acontecendo com a regularidade esperada”, diz.
Para a professora, a demora no julgamento, a falta de consenso entre os juízes no tratamento dos casos de abuso de poder econômico e captação ilícita de sufrágio, além de uma brecha na Lei da Ficha Limpa, possibilita que políticos processados por distribuição de benefícios aos eleitores, se candidatem novamente nas eleições seguintes: “Com uma liminar, ele volta a ser elegível”, explica Silvana. Leia a entrevista:
Instituto Millenium: Qual é a pena prevista para candidatos que distribuem favores aos eleitores nas eleições, caso dos políticos que mantêm centros sociais? É multa? De quanto? A maioria paga a multa?
Silvana Batini: A multa, neste caso, é uma pena quase que acessória. O Direito Eleitoral nomeia a distribuição de favores aos eleitores de duas formas: captação ilícita de sufrágio e abuso de poder econômico. Essas duas irregularidades podem redundar em cassação do registro de candidatura ou do mandato, caso o candidato tenha sido eleito. Além disso, o político pode ficar inelegível por oito anos, se a penalidade for aplicada por um órgão colegiado. A multa vai de mil a 50 mil Ufir [considerando o valor da Ufir Nacional de R$1.0641, a multa varia de R$ 1.064,1 a R$ 53.205]
Os centros sociais são uma forma muito peculiar do Estado do Rio de Janeiro de distribuição de favores em troca de votos. Se olharmos o resto do Brasil, não há tanto a prática, dentro do modelo de centro social, como aqui no Rio. Em Porto Alegre, por exemplo, tem um modelo um pouco diferente, os albergues [casas de hospedagem mantidas por políticos]. Mas é tudo na base do político instituidor de um centro prestador de serviços que deveriam ser prestados pelo poder público. O candidato preenche o vácuo e acaba capitalizando eleitoralmente aquela benesse.
No Rio de Janeiro, o Ministério Público Eleitoral, desde as eleições de 2008, vem combatendo os centros sociais, dizendo “isso é abuso de poder econômico, isso é captação ilícita de sufrágio”. Algumas decisões do Tribunal Regional Eleitoral caminharam neste sentido, reconhecendo os casos como captações de sufrágio, ilícitos eleitorais, e condenaram os candidatos, que estão inelegíveis. Mas os juízes não tiveram uma uniformidade no tratamento dos centros sociais. Então, alguns políticos foram condenados e outros não.
Instituto Millenium: Quando os candidatos são condenados, na eleição seguinte eles não podem se candidatar porque são barrados pela Lei da Ficha Limpa?
Silvana: Exatamente.
Instituto Millenium: Existe alguma dificuldade para punir o candidato que comete esse tipo de irregularidade?
Silvana: Existe. Primeiro, é a própria tese. Qual é a defesa de quem tem centro social? Eles argumentam: “Eu sou uma pessoa que gosta de fazer caridade. Sou bom”. [Tal argumento] é uma tentativa de descaracterizar a prática como forma de captar voto. A primeira coisa a ser combatida é essa: quem entra na vida pública tem que abandonar a caridade. Político não faz caridade. Política e caridade são ideias que não podem andar juntas. Porque, caso contrário, o eleitor vai votar no instituidor da benesse por gratidão ou por medo de perder o benefício, já que o estado não está suprindo sua necessidade. Durante as ações em 2014, o MP verificou que os políticos que possuem um centro social, com lazer para a terceira idade, médico, gabinete de dentista, enfim, quando ele se elege, não tem iniciativas nessas áreas. Como político, ele não trabalha em tais áreas. Na verdade, para o político a omissão do Estado é boa porque ele forma seu curral eleitoral.
Instituto Millenium: Mas é difícil para o Estado provar que o candidato estava se beneficiando daquele centro social?
Silvana: Não. Nas eleições de 2010, foram feitas apreensões que eram provas muito fortes. Propaganda do candidato dentro do centro social, o nome do centro social era o do político e quando se perguntava às pessoas “de quem é o centro?”, “por que você está aqui?”, elas respondiam “porque é o deputado tal, do vereador tal”… Então, prova tinha. O problema foi formar o convencimento em torno dos processos. Em alguns houve êxito, em outros não.
Instituto Millenium: A impressão que fica para os eleitores é que os candidatos cometem a irregularidade e nada é capaz de freá-los. O que pode ser feito para impedi-los de continuar distribuindo benefícios à população em época de eleições? Os centros sociais, por exemplo, podem ser fechados?
Silvana: Os candidatos têm que ser punidos. Na verdade, basta que se aplique a lei de forma rigorosa. Centro social é compra de voto em atacado e ele deve ser fechado. Os juízes da propaganda vêm fechando os centros sociais desde 2010. Fecha tudo e apreende tudo. Mas, na eleição seguinte, eles estão abertos de novo. E alguns políticos não abrem centro social só na época das eleições. Alguns mantêm o centro social aberto durante o período não eleitoral porque eles vão formando a sua base. É uma outra discussão: será que o centro social mantido fora do período eleitoral também é irregular? Eu acho que é. Esses centros sociais são caixas pretas, ninguém fiscaliza. O Conselho Regional de Medicina (CRM) não sabe do médico que está lá, a vigilância sanitária não sabe sobre a farmácia que distribui remédio, ninguém fiscaliza o fisioterapeuta que faz reabilitação e ninguém sabe como aquilo é financiado.
Instituto Millenium: Mas a Justiça eleitoral combate os centros sociais também fora das eleições ou não cabe a ela?
Silvana: Neste caso, se o político se candidata, o Ministério Público mostra que ele mantém centro social desde o ano X e isso configura abuso de poder econômico. Ele está saindo na frente e desequilibra o pleito.
Instituto Millenium: Então, o político não pode ter centro social em época alguma?
Silvana: No ponto de vista do Ministério Público não. Mas a Justiça tem decisões conflitantes neste sentido. A composição dos tribunais regionais dos estados muda bastante, então, o entendimento dos juízes vai mudando também.
Instituto Millenium: Mas a punição para esses candidatos é considerada branda? Por que eles insistem nesta irregularidade? O crime acaba compensando?
Silvana: Porque eles não são punidos da forma exemplar como deveriam ser. O candidato que tiver um centro social deveria ser alijado do pleito. Mas isso não está acontecendo com a regularidade esperada. Foram poucos os candidatos punidos na eleição passada. Então, das ações propostas nas eleições passadas poucas tiveram êxito. O que a gente pretendia também era uma posição formal do Tribunal Superior Eleitoral sobre centro social. Isso está faltando. Como é um fenômeno tipicamente fluminense, o Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro condenou alguns casos e absolveu outros. Nos casos em que houve absolvição, o MP recorreu ao Tribunal Superior Eleitoral. Era importante que o TSE estabelecesse as diretrizes. O tribunal julgar “durante o ano eleitoral não pode, mas em ano não eleitoral sim”, enfim, fixar os parâmetros que ele considere válidos. Mas não fez isso. Então, nós ficamos ainda em um plano de indefinição muito grande no que se refere a centro social no Rio de Janeiro. E esses recursos não foram julgados em tempo hábil. Existe também uma legislação eleitoral que permite muitos recursos. Há uma crise de eficácia da lei.
Instituto Millenium: A Justiça Eleitoral consegue punir os casos antes das eleições? Ela consegue ser rápida? Ou os candidatos são punidos apenas após as eleições? Eles podem perder o cargo?
Silvana: O esperado era que as ações fossem julgadas o mais rápido possível para não criar uma insegurança jurídica, uma vez que o sujeito fosse eleito. Mas isso não acontece. Na verdade, as ações acabam sendo julgadas depois que o sujeito está eleito. E às vezes o sujeito cumpre o mandato e a ação contra ele nem foi julgada ainda. Mas se forem julgados e condenados podem perder o cargo. Tem muitos casos assim. Isso acontece mais no nível municipal. Há vários casos de prefeito que é cassado e sai, obtém liminar e volta; a liminar é cassada e ele sai de novo.
Instituto Millenium: É por isso, então, que a gente vê casos de políticos que tiveram problemas em pleitos anteriores e que voltam a se candidatar nas eleições seguintes? É porque o processo ainda está em curso?
Silvana: Exatamente.
Instituto Millenium: O político condenado por esse tipo de crime – distribuição de benefícios à população em época de campanha – pode ser enquadrado na Lei da Ficha Limpa? Por que vemos políticos que cometeram este mesmo crime nas eleições passadas voltando a repetir a irregularidade nestas eleições? Por que a lei não barrou esses candidatos?
Silvana: O político pode ser enquadrado na Lei da Ficha Limpa se ele for condenado por um órgão colegiado. Ele volta a repetir a irregularidade nas eleições seguintes porque, provavelmente, não chegou a ser condenado, conseguiu evitar a condenação. Ou foi condenado, mas conseguiu suspender a condenação no TSE. A Lei da Ficha Limpa não exige que o processo tenha sido transitado e julgado — e isso foi um ganho obtido com a lei. Em compensação, a mesma Lei da Ficha Limpa permite que se suspenda a eficácia do julgamento colegiado. Com uma liminar, ele volta a ser elegível. Isso acontece não só com condenados por improbidade administrativa, mas também por infrações eleitorais.
Instituto Millenium: Então, depende muito do entendimento do juiz, de liberar essa liminar?
Silvana: Sim, claro. É uma certa incoerência da Justiça. Para o candidato se tornar ficha suja, ele tem que ser condenado por um colegiado. Não basta um juiz para condenar. Mas um juiz de uma instância superior, monocraticamente, pode suspender a condenação. É uma brecha que a Lei da Ficha Limpa deixou.
Instituto Millenium: O que vai fazer a diferença mesmo é o eleitor?
Silvana: A Lei da Ficha Limpa não substitui e nem pode retirar do eleitor a sua responsabilidade. Cada um tem que ter a sua própria Lei da Ficha Limpa, com seus próprios critérios. A Lei da Ficha Limpa foi um avanço. Mas ela não é tudo, não é suficiente, muito longe disso. O eleitor precisa desenvolver seus critérios de escolha. Da mesma forma que o eleitor é criterioso ao escolher a escola do filho, o funcionário da empresa, tem que ser criterioso para escolher o seu representante.
Instituto Millenium: O cidadão tem de fato conhecimento de que certas práticas são irregulares?
Silvana: Não. Faz falta uma grande campanha de esclarecimento, que até é feita, mas ainda tem um longo caminho a percorrer. Acho que neste ponto, a internet, com as redes sociais, assume um papel importante. Percebemos que nestas eleições está havendo uma influência grande das redes sociais na formação do convencimento do eleitor. Depois das eleições, talvez seja um objeto de estudo, saber até que ponto a rede ajuda na formação do convencimento. É positivo. Nós temos uma tradição no Brasil que é paternalista. Achamos que uma lei virá de cima para baixo e resolverá tudo. Ou que alguém vai tomar conta e não deixar sair um candidato mau caráter. Mas a verdade é que a lei tem limites.
Instituto Millenium: O que o cidadão pode fazer para denunciar um candidato que ofereça benefícios?
Silvana: Pode ir ao Ministério Público Eleitoral ou recorrer ao seu portal, que recebe denúncias do Brasil inteiro. Se ele não quiser ir pessoalmente, pode usar o portal. Hoje em dia, temos muitos recursos para denunciar: todo mundo tem telefone, pode tirar fotografia, gravar, filmar… O importante é o eleitor saber que ele não é obrigado a votar em candidato que prometeu ou entregou qualquer benefício. Ninguém deve se sentir obrigado a isso.
*Foto de André Telles/Divulgação
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