Por iniciativa pessoal do presidente da República, a imprensa vai se convertendo em ré nesta campanha eleitoral. Nos palanques, ele vem investindo agressivamente contra ela. Diz que vai derrotá-la nas eleições. Lula grita, gesticula, fala com muita virulência. Por que será?
É difícil de entender. Ele sairá consagrado de seus dois mandatos. A aprovação popular que o eleva às alturas é um feito sem precedentes. O clima no País é de otimismo. Os indicadores econômicos, em sua maioria, atestam expansão, crescimento, solidez. Sua candidata ao Planalto lidera as pesquisas com imensa folga. Por que, então, todo esse ressentimento?
Uma ministra da Casa Civil acaba de sair da Pasta porque reportagens revelaram irregularidades graves em torno dela. As notícias que a derrubaram eram mentirosas? Se não eram, por que a demissão (dela e de outros)? Agora: se a demissão procede, por que tanta raiva?
É compreensível, isto sim, que as autoridades guardem mágoas do noticiário. Quem já exerceu cargo público, ainda que de projeção modesta, sabe que a leitura diária dos jornais é uma roleta-russa macabra: de repente, vem lá uma bordoada envolvendo o nome do sujeito em maracutaias das quais ele jamais ouvira falar. Dar de cara com esse tipo de aleivosia é das piores experiências que existem (para quem tem vergonha na cara, vale lembrar). Além de despreparo técnico, que leva as reportagens a confundirem deselegância com ilicitude, assim como confundem mandado com mandato, há também o despreparo humano, emocional, o desrespeito aos semelhantes, o preconceito mais deslavado. Tudo isso é lamentável. Mas tudo isso se refere à dor da pessoa física. O estadista, por dever de ofício, não pode permitir que sua dor pessoal conduza suas atitudes como chefe de Estado. Simplesmente não pode.
Lula sabe disso. Ele sabe disso muito mais do que todos nós. E, também por isso, é difícil aceitar e entender a brutalidade dos seus ataques aos jornalistas. Mas, se nos esforçarmos, podemos encontrar uma linha de explicação.
Ela começa pela necessidade de blindar a candidatura de Dilma Rousseff contra reportagens que possam minar o voto de confiança que ela vem recebendo nas pesquisas. Para isso, Lula caracteriza a imprensa como “partidos de oposição”. Ele iguala o discurso jornalístico ao discurso da oposição e, na sequência, conclama os eleitores a “derrotar alguns jornais e revistas que se comportam como partidos políticos”. Eis a fórmula da blindagem necessária. Portanto, o movimento teatral de Lula é estritamente racional, calculado. E faz sentido.
O lastro eleitoral de Dilma vem de Lula. Se o mesmo Lula amaldiçoa os que a criticam, desqualificando-os um a um, pode, além de lastreá-la, vaciná-la contra as críticas. Esse é o sentido eleitoral do discurso do presidente. A logística é bem simples. Primeiro, ele afirma que certos “jornais e revistas” não são imprensa, mas “partidos de oposição”. Assim, joga-os no descrédito. Se são partidários, merecem a mesma confiança que os partidos da oposição (embora o governo demita autoridades cujas condutas foram reveladas suspeitas por esses mesmos jornais e revistas, ou seja, na prática, o governo lhes dá crédito, mas no discurso tenta desmoralizá-las). Em seguida, Lula cuida de se afirmar democrata: “A liberdade de imprensa é uma coisa sagrada.” Portanto, ninguém pode acusá-lo de autoritário. Imediatamente, porém, estabelece condições para a liberdade. “A liberdade de imprensa não significa que você possa inventar coisas o dia inteiro.” (…) “Significa que você tem a liberdade de informar corretamente a opinião pública, para fazer críticas políticas, e não o que a gente assiste de vez em quando.”
Claro: o raciocínio tem problemas sérios. Lula cumpre o seu objetivo eleitoral, sem dúvida. Mas a que preço? Ao preço de promover o engano e a discórdia.
O engano. Lula faz crer que liberdade existe apenas para os que informam “corretamente”. Não é bem assim. A liberdade de imprensa inclui a liberdade de que veículos impressos – que não são radiodifusão e, portanto, não dependem de concessão pública – assumam uma linha editorial abertamente partidária. Qualquer órgão impresso (ou na internet) pode, se quiser, fazer oposição sistemática. A liberdade não foi conquistada apenas para os que “informam corretamente”, mas também para os que, na opinião desse ou daquele presidente da República, não informam tão corretamente assim. Se um jornal quiser assumir uma postura militante, de cabo eleitoral histérico, e, mais, se quiser não declarar que faz as vezes de cabo eleitoral, o problema é desse jornal, que se arrisca a perder credibilidade. O problema é dele, só dele, não é do governo.
A discórdia. Alguém poderá acreditar que cabe ao Estado definir o que é “informação correta” e, com base nessa crença, poderá pedir a perseguição estatal de órgãos de imprensa. Seria tenebroso. Não cabe ao Executivo, ao Legislativo ou ao Judiciário definir o que é “informação correta”. Isso é prerrogativa do cidadão e da sociedade. Que setores da sociedade protestem contra esse ou aquele jornal faz parte da vida democrática. Às vezes, é bom. Pode ser profilático. Agora, que o governo emule, patrocine ou encoraje esses movimentos é no mínimo temerário.
Enfim, é possível entender o tom furibundo do maior eleitor de Dilma. É possível, também, criticá-lo. A pessoa do presidente tem direito de se irritar com o noticiário. Tem até o direito de processar jornalistas. Mas o chefe de Estado não deveria semear o ódio, conclamando o povo a “derrotar” órgãos de imprensa. Não que isso ameace a ordem democrática. Não exageremos. Temos ampla liberdade de expressão no Brasil. Mesmo assim, vale anotar: essas declarações presidenciais, ainda que explicáveis, são inaceitáveis.
Fonte: Jornal “O Estado de S.Paulo” – 23/09/10
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