Parece que os € 200 bilhões do BCE, canalizados pelo FMI, podem agravar a situação hoje existente
A crise europeia continua atraindo a atenção de todos e, por mais que prefira falar de outros tópicos, não há como escapar do tema.
Desenvolvimentos recentes -como o pacote de ajuste fiscal italiano, a iniciativa dos bancos centrais mundiais de facilitar o financiamento dos bancos e a aventada possibilidade de o Banco Central Europeu (BCE) emprestar € 200 bilhões para o Fundo Monetário Internacional (FMI), que seriam então usados para financiar os países europeus em dificuldade- trouxeram alívio considerável aos mercados, ainda estressados.
Entretanto, da forma como vejo a questão, esse empréstimo do BCE ao FMI traz riscos consideráveis, que não me parecem plenamente compreendidos, relacionados ao direito geralmente atribuído ao Fundo de receber de volta plenamente seus empréstimos (senioridade).
Para entender isso, imagine que, num belo dia, os investidores acordem (a expressão foi involuntária, mas caiu bem) e descubram que certo país, cuja dívida é de US$ 100, só tem condições de pagar US$ 80.
Assim, dado que cada credor seria tratado em condições de igualdade, o valor de mercado de seus títulos cairia de 100% para 80%.
No entanto, durante o café, os investidores descobrem também que metade da dívida tem de ser paga integralmente a um credor sênior (por exemplo, o FMI).
O Fundo recebe, pois, US$ 50 e, dessa forma, só restam ao país US$ 30 para servir a dívida restante (outros US$ 50). Nesse caso, os credores juniores só receberiam 60% do que emprestaram, ou seja, o valor de seus títulos seria de 60% em vez de 80%.
Posto de forma mais geral, quanto maior for a parcela devida a um credor sênior, tanto maior será o desconto sobre a dívida júnior, o que deve se refletir nos preços a que tais títulos são transacionados no mercado.
Portanto, se tivéssemos certeza de que determinado país não tem condições de servir integralmente sua dívida, o mero anúncio de um pacote de financiamento do FMI deveria fazer com que o preço dela no mercado secundário despencasse, excetuando-se, é claro, o preço da dívida que será saldada com os recursos provenientes do Fundo. (Num caso extremo, se os recursos do FMI permitissem saldar toda dívida, então os preços subiriam, mas, convenhamos, esse não é dos cenários mais prováveis na ordem natural das coisas).
Apenas se a intervenção do FMI servisse para elevar a capacidade de pagamento da dívida é que esse resultado deixaria de valer.
A outra hipótese crucial é a certeza sobre a incapacidade do governo de servir sua dívida.
Assim, no caso da Grécia, parece óbvio que o ingresso de recursos do Fundo deve ter contribuído para a redução do preço (aumento do rendimento) dos papéis gregos no mercado secundário.
Por outro lado, quando nos referimos a países como Itália e Espanha, a situação é bem mais complexa.
Há certo consenso entre economistas menos propensos a uma visão moral do endividamento que a dívida desses países pode ou não ser sustentável, dependendo das condições de financiamento.
Em outras palavras, se submetidos a taxas de juros moderadas, tais governos seriam solventes; por outro lado, a persistirem as taxas de juros atuais, a dívida não poderia ser integralmente paga.
Em jargão econômico, descrevemos tais situações como caracterizadas por “equilíbrios múltiplos”.
Voltando ao caso em questão, parece que os € 200 bilhões do BCE, canalizados pelo FMI, seriam insuficientes para fazer com que o bom equilíbrio, marcado por taxas baixas de juros, predomine.
Nesse caso, ao risco do equilíbrio ruim prevalecer, adiciona-se a senioridade do FMI e, como já descrito, o efeito final seria a redução de preços de mercado da dívida, tornando mais cara a rolagem e agravando a situação hoje existente.
A Europa precisa de um novo credor com a mesma senioridade dos existentes; vender a senioridade por um punhado de euros irá agravar o problema.
Fonte: Folha de S. Paulo, 07/12/2011
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