A obrigação do Ministério da Saúde é garantir que todo brasileiro vítima da gripe suína seja bem atendido e receba os medicamentos indicados, no caso o Tamiflu. O ministro da Saúde José Gomes Temporão banca essa garantia. Isso posto, qual o problema se um brasileiro preferir comprar o Tamiflu numa farmácia, tendo para isso a receita passada por um médico particular ou do seu plano de saúde? Não haveria concorrência com o setor público, pois o ministro assegura que já tem os remédios na quantidade suficiente para atender a todos os que podem sofrer com a gripe. Ainda assim, permanece a restrição de venda nas farmácias. Por quê?
Em conversas com fontes do governo, as respostas são as seguintes:
Embora a receita seja obrigatória, acredita-se que muitas farmácias venderão sem a receita, o que levaria a um uso abusivo e indiscriminado do medicamento;
médicos despreparados podem também exagerar na prescrição do medicamento, com as mesmas consequências;
os ricos, com medo da epidemia, comprarão tudo das farmácias, esgotando os estoques.
Faz sentido?
Primeiro ponto: a análise considera que os brasileiros não sabem cuidar de si e, com liberdade de escolha, agirão de modo contrário aos seus verdadeiros interesses. Quem sabe quais são os seus interesses? O governo, é o que estão a nos dizer.
É claro que muita gente, tendo a oportunidade, correrá para a farmácia comprar Tamiflu. Poucos conseguirão, entretanto, se o governo fizer o que é sua função determinada, a de fiscalizar e garantir que a venda se faça apenas com receita. Deve ser mais fácil exercer essas fiscalização, sobretudo considerando que as redes de farmácia estão concentradas, do que, digamos, organizar a distribuição a tempo do Tamiflu para todos os doentes, Brasil afora.
Do mesmo modo, não se pode restringir a venda de um medicamento antigripe com base na expectativa de que poderia ser prescrito por médicos despreparados. Se isso fizesse sentido, então seria necessário proibir a venda em farmácia de todos os medicamentos sensíveis, como antidepressivos e antibióticos, e reservar prescrição e venda para o setor público. Mais ainda, por que os médicos do setor privado (incluindo os dos planos e seguros-saúde) seriam mais despreparados que seus colegas do setor público?
Em resumo, há nessas objeções do pessoal do governo não apenas a ideia de que as pessoas não sabem cuidar de si mesmas, como também a desconfiança de que os médicos do lado privado, que atendem mais de 45 milhões de pessoas com planos ou seguros de saúde, são despreparados ou movidos por outros interesses.
Mas imaginemos que aconteça tudo o que o pessoal do governo teme: que se vendam milhões de frascos sem receita, que os médicos distribuam ou vendam milhões de receita e que ocorra uma corrida às farmácias, com esgotamento dos estoques e alta de preços no câmbio negro (pois os preços na farmácia estão tabelados).
E daí? Se o setor público estiver preparado para atender a todos, universalmente, qual o problema? Os ricos – estúpidos – estariam torrando dinheiro e se entupindo de um medicamento sem necessidade, com a cumplicidade de seus médicos. E os pobres estariam sendo bem atendidos na rede pública.
Ora, gente, vamos reparar. As pessoas ricas ou pobres, tirante os hipocondríacos e os malucos, são razoáveis, sabem o que lhes convém. Mães, preocupadas, não sairão por aí entupindo suas crianças de Tamiflu. Será que as grávidas, que só pensam em seus bebês, tomarão o antiviral a qualquer espirro?
Também é mais razoável supor que a maioria dos médicos saberá cumprir suas obrigações e seu juramento. E não faz sentido imaginar que os planos de saúde pudessem forçar seus médicos a prescrever mais Tamiflu. Em resumo, o setor da medicina privada funcionaria exatamente como funciona, com seus méritos e seus pecados. E continuaria sendo uma demonstração viva da incapacidade do setor público de prestar assistência a todos os brasileiros.
Diz a Constituição que saúde é direito de todos e dever do Estado e que o Sistema Único de Saúde (SUS) é o guardião e executor dessa universalidade. Está dito aí que todo brasileiro tem de receber do Estado assistência médica de boa qualidade, a tempo e gratuita. Mas 45 milhões de brasileiros pagam planos e seguros de saúde. Pela Constituição, a rede privada, apenas tolerada, tem função acessória. Mas um acessório de 45 milhões de pessoas quer dizer alguma coisa, não é mesmo?
E diz a mesma coisa que o comércio de Tamiflu nos camelôs de Porto Alegre, no Paraguai e pela internet: a falta de confiança na ação do governo. Se todos tivessem certeza de que seriam bem atendidos na rede pública, por que pagariam por um outro serviço?
Isso mostra também, e mais uma vez, que a proibição do comércio legal leva, como sempre, aos caminhos tortuosos do ilegal. Por outro lado, a existência de um setor privado alivia o setor público. Se uma pessoa com plano de saúde pudesse ir a seu médico, ser consultada, receber a receita e comprar o Tamiflu na farmácia ao lado, seria uma demanda a menos nos postos públicos. Essa é a questão que deveria ocupar as autoridades do setor. Até faz sentido exigir que o setor público tenha prioridade na compra dos medicamentos em caso de escassez. Mas, uma vez tendo o setor público garantido seu estoque, continuar proibindo o comércio privado não é apenas equivocado. Pode ser uma ameaça a muitas vidas.
É sério. Se a pessoa, na rede pública, leva horas para ser atendida e dias para conseguir o medicamento, isso é um risco que está sendo imposto pelas autoridades e pelo qual deveriam ser cobradas.
(O Estado de SP – 10/08/2009)
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