No artigo “Por que as universidades privadas brasileiras são, na média, de qualidade questionável?” (disponível em www.vitorwilher.com/artigos-de-opiniao) descrevi os motivos pelos quais o ensino superior não pode ser considerado um bem público. Além disso, relacionei a existência de uma universidade estatal gratuita à má qualidade média das universidades privadas. Nesse artigo volto ao tema, para cumprir ao menos dois objetivos: 1) aprofundar a discussão; 2) estabelecer uma proposta de alocação dos recursos provenientes das mensalidades pagas em universidades estatais.
Para que um bem seja considerado público ele deve cumprir dois requisitos: a) o custo de um indivíduo a mais se beneficiar do bem ser praticamente nulo; b) ser muito difícil, senão impossível, excluir alguém do consumo (ou acesso) desse bem. É peremptório, portanto, que o ensino superior estatal (e gratuito) não atende tais condições. Segundo a última Sinopse Estatística do Ensino Superior, divulgada pelo INEP-MEC, apenas 22% dos ingressantes no ensino superior o fazem para uma universidade estatal. Todos os demais entram em uma universidade privada.
Outro aspecto do acesso às universidades estatais é ainda mais problemático. Do total de matrículas nesse tipo de universidade, cerca de 50% das mesmas são ocupadas pelos 20% mais ricos. Em outras palavras, uma parte considerável das matrículas em universidades estatais gratuitas é ocupada por indivíduos que estudaram em escolas privadas, são filhos de pais com ensino superior, são solteiros, estão na idade ideal e pertencem aos extratos mais abastados da sociedade. Há necessidade de subsidiar um bem caro como ensino superior para esse tipo de público?
O economista norte-americano John E. Roemer divide o resultado que um indivíduo alcança dentro da sociedade em circunstâncias e esforço. No primeiro estão todos os fatores fora do controle desses indivíduos, tais como renda e escolaridade dos pais, cor da pele, local de nascimento e, no Brasil especificamente, tipo de escola que freqüenta. No segundo estão as variáveis que o mesmo controla, como a dedicação aos estudos, por exemplo.
Em suas pesquisas, Roemer propõe que para uma sociedade ter igualdade de oportunidades para todos é necessário que o esforço individual seja a única variável relevante. Desse modo, as circunstâncias em que estão inseridos os diferentes indivíduos não devem ser relevantes para o resultado final que atinjam. Ora, deve haver algo muito errado no Brasil, portanto, já que apenas 5% dos que alcançam o ensino superior estatal gratuito pertencem aos 20% mais pobres. Não é por outro motivo que nosso país é um dos mais desiguais do mundo, gerando uma infinidade de conflitos sociais.
Alega-se que melhorar a educação básica pública, pura e simplesmente, reduziria a desigualdade de oportunidades existente no país. Com uma escola pública melhor, as crianças e jovens oriundas de lares pobres poderiam ter a chance de alcançar a universidade estatal gratuita. Pouco se discute, porém, que o acesso a uma boa escola é apenas uma das circunstâncias a que estão inseridos essas crianças e jovens. Nada se fala dos demais, como formação e renda dos pais, local de nascimento, cor, pressão para entrar cedo no mercado de trabalho etc. Além disso, toma-se a melhoria da educação básica como premissa para justificar uma injustiça: a existência de uma universidade estatal gratuita para um público que poderia pagar por ela. Nesse contexto, mesmo que em uma situação ideal, a educação básica pública brasileira melhorasse, ainda assim, existiriam problemas de igualdade de oportunidades. O que fazer, então?
Imagine que fosse cobrada uma mensalidade de R$ 1.000 para todos aqueles que podem pagar pelo ensino superior estatal. Como 50% dos indivíduos que acessam esse tipo de serviço pertencem aos 20% mais ricos, espera-se que se arrecadem com tal cobrança mais de R$ 600 milhões. Esse dinheiro poderia ser integral ou parcialmente revertido para a melhoria dos cursos de licenciatura, o que teria impacto direto sobre a melhoria da educação básica.
Com essa verba poderiam ser pagas bolsas de estudo para que futuros professores possam estagiar em escolas públicas desde os primeiros períodos da licenciatura. Isso impediria que tais alunos trabalhassem em outras atividades ao longo da faculdade, algo que ocorre de forma generalizada hoje em dia. Além disso, poderia financiar a construção de um exame padrão de alcance nacional que avalie a qualidade dos professores – ao estilo do que hoje é feito no setor de tecnologia com as certificações.
É notório que a situação atual é de extrema desigualdade de oportunidades no país. Seja no acesso a uma boa escola básica, seja no acesso ao ensino superior estatal. Aqui foi apontada uma tentativa de mudança, mas muitas outras podem ser pensadas. O que não pode ser perpetuado é o financiamento de um bem tipicamente privado, o ensino superior, para um público que pode (e deve) pagar por ele.
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