O ano de 2008 foi marcado pela última crise econômica global antes da pandemia do novo Coronavírus. À época, o governo federal adotou uma série de medidas para tentar transformar a grave recessão em “marolinha”, com uma forte intervenção do Estado na economia e pesado aumento dos gastos públicos. No médio prazo, o efeito foi perverso: as políticas de escolha dos “campeões nacionais” e privilégios fiscais para setores específicos não tiveram o resultado desejado e a economia desacelerou até derreter completamente em 2015. Após dois anos de recessão e outros dois marcados por um início de superação da crise, a pandemia chegou como um novo desafio para os gestores públicos em todo o mundo. Se por um lado, é inevitável o papel do Estado neste momento; por outro, a ameaça de mais intervencionismo após a superação da crise preocupa economistas e especialistas nas contas públicas.
Em entrevista ao Instituto Millenium, a economista Zeina Latif explicou a necessidade das medidas de ajuste que foram adotadas nos últimos anos para corrigir o rumo da política econômica, como a Lei do Teto de Gastos, a Regra de Ouro e a Lei de Responsabilidade Fiscal – dispositivos que devem ser preservados. “Tivemos que fazer estas regras porque o Brasil demonstra pouco compromisso com a disciplina fiscal, historicamente. E aí, foi preciso criar mecanismos para forçar essa disciplina. Quando tivermos a maturidade necessária, vamos poder relaxar essas amarras todas”, disse.
Ela destacou que as medidas de controle, intensificadas após a crise econômica gerada pelos gastos desenfreados do governo Dilma Rousseff, além de serem necessárias para a manutenção das contas públicas, trouxeram resultados positivos para a economia: com a queda nos índices inflacionários, foi possível baixar as taxas de juro aos menores níveis da história, o que movimentou a atividade econômica. “A regra do teto teve um impacto muito importante, porque gerou perspectiva de ajuste fiscal. Isso foi ingrediente central para a redução da inflação. Quando a gente vê países com inflação teimosa, ameaçando sair do controle, sempre a origem é fiscal. Não à toa, quando houve esse desvio de rota, havia essa ameaça. O rombo é enorme, mas a perspectiva de ajuste é uma grande âncora”, disse.
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Zeina Latif acredita, no entanto, que a tendência da sociedade é rejeitar este tipo de ação populista. Isso porque uma pressão inflacionária, além de ser perversa para as camadas populares, também gera desconforto na classe média, com efeitos práticos no dia a dia e com a desaceleração da economia como consequência direta. “Acredito que a tendência é uma reação da sociedade. Um exemplo foi a Reforma da Previdência, quando houve uma conscientização a respeito da medida”, afirmou.
Medidas emergenciais são necessárias agora; depois, retorno à austeridade é primordial
O especialista Pedro Trippi também afirmou que, agora, é importante elevar os gastos públicos – no entanto, é preciso ter cautela, uma vez que, por conta dessa situação excepcional, o resultado primário das contas públicas será gravemente deteriorado. “Antes do Covid, as contas já não estavam saudáveis. Agora, veremos um problema ainda maior. É muito importante que o governo, tão logo a crise acabe, retome a agenda da normalidade. O custo de não se fazer isso é o Estado brasileiro passar por uma crise de insolvência, que pode culminar na elevação das taxas de juros e o retorno da recessão, algo que ninguém quer”, disse.
Com relação ao que foi adotado até agora pelo governo federal, Zeina Latif disse que houve uma reação para estabelecer prioridades e um esforço importante para que as medidas fossem transitórias, sendo restringidas após o fim da crise gerada pela pandemia. “O governo estabeleceu como prioridades o socorro às pessoas vulneráveis e os trabalhadores que poderiam perder o emprego neste primeiro momento. Neste quesito, as ações foram bastante acertadas”, lembrou.
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Latif alertou para outra questão importante: a economia sofrerá graves transformações após o período e as ações que os governos vão tomar devem levar isso em conta. Um exemplo é o incentivo para o setor de aviação. “Haverá um impacto muito grande nas viagens de turismo, por uma questão de hábito. É uma mudança de perfil e as empresas vão ter que lidar com a questão, se fundindo, eventualmente até desistindo do negócio. Quando se fala em socorrer, precisa ter essa visão do que é transitório e do que é permanente. Tenho uma preocupação com esta linha do ‘socorrer e depois ver o que faz’. O zelo no uso do recurso público é essencial”, afirmou.
Sinal trocado
Essa preocupação com o aumento nos gastos públicos cresceu com o anúncio do “Plano Pró-Brasil”, gestado pelo Ministério da Casa Civil. O amontoado de slides apresentado na semana passada chamou atenção para a proposta de maior interferência do Estado na economia, com a injeção de R$ 30 bilhões em investimento público, indo na contramão da política adotada anteriormente, de propiciar o investimento em infraestrutura e serviços por meio de desestatizações e concessões. A proposta chegou até mesmo a ser comparada com o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), vitrine das gestões petistas que legou um cemitério de obras paradas no país.
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Pedro Trippi destacou que é preciso aguardar mais detalhes a respeito da proposta, mas ficou preocupado. “Não existe margem pra fazer isso agora. Nós sabemos que o investimento público geralmente não tem qualidade, é feito de forma obscura e não leva em conta racionalidade. O caminho correto para retomar o investimento deveria ser novos pacotes de concessões e privatizações; além do reequilíbrio das contas públicas, que estimula o investimento privado. É preciso retomar essa agenda e garantir equilíbrio fiscal e segurança jurídica para que o investimento privado floresça. Sem isso, os empreendedores ficam reticentes em investir mais”, afirmou.
Equipe econômica defende austeridade pós-crise
Em entrevista realizada na quarta (29) ao Millenium, o secretário de Política Econômica do Ministério da Economia, Adolfo Sachsida, disse que a política de austeridade será retomada após a pandemia. “Temos que rapidamente retomar a nossa estratégia de consolidação fiscal e combate à má alocação de recursos. Reduzir a relação dívida/PIB é fundamental para que o setor privado tenha espaço para liderar a retomada econômica”, avaliou.