Talvez não se preste muita atenção nisso, mas os fatos mostram que o Brasil vive hoje o que é provavelmente o período de liberdade de imprensa mais longo de toda a sua história. Tomando como ponto zero a Constituição de 1988, já são mais de 25 anos seguidos de respeito pleno e sem interrupções ao direito de livre expressão em todas as áreas da sociedade brasileira — estirão de tempo que é um colosso, realmente, quando se levam em conta os usos e costumes da nossa terra e nossa gente. Esse fundamento essencial da democracia vai muito além dos meios de comunicação; é desfrutado sem nenhuma restrição também na atividade política, nas organizações profissionais, nas manifestações públicas, nas artes, na cultura, nas salas de aula e na pregação religiosa. Mais ainda. A liberdade de palavra há muito tempo deixou de ser um direito limitado a jornalistas. Passou a ser exercida hoje pelos milhões de brasileiros que se utilizam da internet — e ali podem escrever ou falar o que bem entendem, sem ter de pedir licença a ninguém.
[su_quote]Os jornalistas que não querem a liberdade plena para o exercício do jornalismo no Brasil estão construindo um monumento à intolerância[/su_quote]
Mas, como bem sabemos, o Brasil é o Brasil, e as coisas por aqui têm um jeito todo especial de se desarrumar quando parecem perfeitamente arrumadas. O país nunca viveu tanto tempo seguido sob as bênçãos da liberdade de imprensa — mas, curiosamente, nunca viu a liberdade de imprensa ser tão atacada como hoje. Quem faz esse ataque não são os suspeitos de sempre: os “poderosos que têm seus interesses contrariados” com a publicação de notícias e opiniões que os incomodam, os “militares”, a “direita”, enfim, os “golpistas”. Não é nem mesmo o governo, o saco de pancadas número 1 dos veículos de comunicação independentes. Não é sequer o comando do PT, cujos programas sonham com uma imprensa paralítica, sujeita a controles da “sociedade” — ou seja, à vontade de quem manda na máquina pública. Não é, com certeza, a presidente Dilma Rousseff, que até agora tem se mantido distante dessa conversa.
A realidade puramente objetiva, ao contrário, mostra que nestes últimos doze anos de governo petista os meios de comunicação brasileiros jamais sofreram uma única agressão concreta por parte da autoridade central; tiveram, e continuam tendo, 100% de liberdade para sentar a pua no governo. O governo fala, sim, em projetos de lei que acabariam com o direito da mídia de divulgar tudo o que quer, sem restrição nenhuma, como ocorre hoje; mas doze anos já se passaram e até agora não aconteceu nada. Não é daí, portanto, que vem a ameaça à liberdade de expressão.
Pode parecer esquisito, e realmente é muito esquisito, mas a principal ameaça à liberdade de imprensa no Brasil vem de jornalistas. São eles, hoje em dia, os que mais combatem o direito constitucional à livre expressão, ao pregar a necessidade de submeter a controles externos o que escrevem ou dizem os jornalistas brasileiros. É algo inédito — estão lutando pelo direito de não informar. “No universo dos países democráticos, os jornalistas brasileiros a serviço do lulopetismo são os únicos que lutam pelo fim da liberdade de imprensa e pela implantação da censura”, escreveu há pouco o jornalista Augusto Nunes na edição eletrônica de VEJA. Fazem bem mais, na verdade, do que Lula e o PT julgam necessário — e vão na direção oposta ao que a presidente diz em público. O empenho deles em aleijar os direitos garantidos no artigo 5o da Constituição Federal fica claro na campanha que fazem em favor da criação de regras para estabelecer o “controle social da mídia”, a “regulamentação dos meios de comunicação” e a “democratização da imprensa”.
Tudo isso é embuste em estado puro — apenas um arranjo de palavras metidas a besta para esconder o propósito real de dar à “sociedade” a possibilidade de proibir ou permitir a divulgação do que é escrito, dito e mostrado nos meios de comunicação. Sabe-se perfeitamente o que é essa “sociedade”: uma salada de entidades que se apresentam como “movimentos sociais”, mas funcionam como tropa auxiliar do governo, são sócias do aparelho estatal e existem para defender as metas políticas de seus chefes. A primeira delas é reduzir ou eliminar as liberdades democráticas das quais não gostam, a começar pelo direito de expressão. Falam, vagamente, na conveniência de rever as “normas econômicas” referentes à mídia. Mas querem, sim, interferir no que chamam de “conteúdo” dos órgãos de comunicação, ou, em português claro, no material que publicam. Os jornalistas que pregam esse evangelho dizem sem parar que o problema é o que sai impresso ou vai ao ar nos veículos independentes — em seu entender, a mídia é de “direita”, hostil ao governo, fixada em denúncias de corrupção, publica opiniões intoleráveis, defende os ricos contra os pobres e sabe lá Deus o que mais. É isso que os incomoda, e é isso, logicamente, que querem suprimir. Se for para a imprensa continuar publicando o que publica hoje, o que adiantará mudar a lei? Na vida real o que propõem é a censura.
Fala-se, também, que é preciso “democratizar” a mídia e derrotar os “monopólios” do setor — um objetivo incompreensível quando não existe nenhum impedimento para a “esquerda”, ou quem quer que seja, lançar jornais, revistas ou blogs na internet. Rádios e TVs requerem concessão pública, mas nas que já existem ninguém é proibido de bajular o governo. É o que acontece, aliás, na maioria das emissoras deste país; há até um canal de televisão criado por Lula. a TV Brasil, que é sustentado com dinheiro de impostos para falar bem das autoridades, dos “movimentos populares” e do PT. Como pensar em “monopólio” num país que tem cerca de 9.500 emissoras de rádio e quase 11.000 retransmissoras de TV, coligadas em 34 redes nacionais? Ou quando só o Instituto Verificador de Circulação, que fiscaliza a tiragem e a venda das principais publicações impressas, acompanha os números de mais de 400 veículos? Democracia de verdade existe quando os órgãos de comunicação concorrem livremente pela preferência do público. É o que acontece hoje no Brasil — o cidadão só lê, ouve ou vê aquilo que quer. E é aí que os evangelistas do “controle social” fracassam — a imprensa independente tem muito mais leitores, ouvintes e telespectadores do que a imprensa pró-governo e pró-PT. A TV Brasil, por exemplo, tem audiência próxima do zero desde que foi ao ar; nem Lula assiste aquilo. Que culpa tem a Rede Globo por isso? Que culpa tem VEJA por vender 1 milhão de exemplares semanais? Não faltam veículos para os jornalistas que trabalham contra a liberdade de imprensa; o que lhes falta é público.
Essa alergia à livre competição se manifesta de forma especialmente cômica na única questão em que falam mal do governo — a distribuição de verbas publicitárias. Aí ficam indignados; acham um despropósito o governo Dilma anunciar em órgãos que o criticam e querem proibir que a “mídia de direita” receba publicidade oficial. Os anúncios governamentais, inclusive na administração PT, são distribuídos de acordo com critérios que levam em conta a audiência dos veículos — quanto mais público tiverem, mais anúncios recebem. As contas estão sendo feitas de forma errada? Que sejam corrigidas, então. Mas os militantes da “democratização da mídia” não estão interessados nesse tipo de questão técnica. Em sua lamentação, estão simplesmente dizendo que o critério para a aplicação de verbas publicitárias do poder público deve ser político: se um órgão de comunicação é contra, deve ter a publicidade cortada; se é a favor, deve ser premiado com mais anúncios. O certo, nesse assunto, seria não haver publicidade nenhuma, de nenhum governo. É pura propaganda; publicidade de governo, num país desenvolvido, é algo tido como um perfeito desvario. Mas a esquerda não quer que o governo brasileiro passe a aplicar suas verbas de comunicação em coisas mais úteis do que ficar falando bem de si mesmo. Quer, isso sim, que tire esse dinheiro da imprensa de “direita” para dar a eles.
A alergia ao direito de livre expressão é uma doença degenerativa; leva à falência múltipla dos circuitos pelos quais trafegam os julgamentos morais e o raciocínio lógico. Nada ilustra tão bem esse quadro clínico como as posições tomadas pelo jornalismo brasileiro de “esquerda” diante da mais selvagem agressão à liberdade de imprensa já ocorrida na história moderna — a chacina, em plena redação, de nove jornalistas do semanário de humor Charlie Hebdo, dias atrás em Paris. Os militantes da “democratização da mídia” no Brasil, muito simplesmente, ficaram contra as vítimas e a favor dos assassinos; tentaram esconder essa prodigiosa opção com parolagem desconexa e baixa filosofia, mas não enganaram nem a si próprios. Uns optaram por fugir — ficaram em completo silêncio. Outros jogaram a culpa em tudo, menos nos autores do crime. A culpa é de Israel, disseram, porque bombardeia a Faixa de Gaza. É dos órgãos de segurança, que não impediram o massacre. É do “preconceito” contra os muçulmanos em vigor no “mundo desenvolvido”. É dos Estados Unidos, que invadiram o Iraque duas vezes e cobiçam o petróleo dos árabes. É dos cristãos, que fizeram cruzadas contra o Islã 900 anos atrás. Outros, enfim, ficaram diretamente contra os colegas assassinados. Em sua opinião, os humoristas do Charlie Hebdo exageraram nas piadas que fizeram; não deveriam mexer com Maomé, não deveriam irritar os muçulmanos, não deveriam desrespeitar o Corão. Conseguiram, todos eles, o notável feito de ficar contra o riso.
Os jornalistas que não querem a liberdade plena para o exercício do jornalismo no Brasil estão construindo um monumento à intolerância. Não mudam de assunto nem de ideia: não apenas organizam listas negras de jornalistas que desagradam, com notícias e opiniões, à trindade Lula-Dilma-PT, mas expedem o tempo todo bulas de excomunhão contra quem, no fundo, apenas vê o Brasil, o mundo e a vida com um olhar diferente do seu. Continua presente, a propósito, o caso da jornalista Rachel Sheherazade, que no ano passado levou a esquerda jornalística a uma crise de nervos, junto com os sindicatos e associações que deveriam representar todos os profissionais de comunicação, mas só gostam dos que são a favor do governo. Essas entidades nada acharam de errado no assassínio em massa dos colegas franceses — não para valer. Mas foram a extremos de indignação porque Rachel disse, num programa no SBT, que achava compreensível que moradores do Flamengo, no Rio de Janeiro, tivessem amarrado num poste de rua um menor acusado de assaltos. Exigiram punições. Ameaçaram mover processos na Justiça. Fizeram, com a corajosa colaboração do SBT, que perdesse seu programa de televisão: é o “Pró-Censura”.
Nenhum jornalista tem o direito de não ser incomodado com críticas — se pode dizer o que quer, também tem de ouvir o que não quer. Da mesma forma, qualquer jornalista pode perfeitamente colocar-se contra a liberdade de imprensa, ou dizer seja lá o que lhe der na telha; que se entenda, depois, com o público. Quer fazer propaganda do governo? Que faça. Quer chamar a presidente Dilma de “presidenta”? À vontade. Quer dizer que a roubalheira do petrolão é uma invenção da mídia de direita? Vá em frente. É uma pena, realmente, que neguem o mesmo direito a quem pensa de modo diferente.
Fonte: Veja, 21/01/2015.
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