Se havia alguma dúvida de que a China estaria seguindo um caminho perigoso, ela foi dirimida esta semana. A decisão de Xi Jiping de se colocar como líder chinês indefinidamente acelera as chances de uma definição mais rápida do que será a economia chinesa na próxima década. E pelo caráter centralizador do atual presidente, pode ser que a solução final não seja positiva.
A ideia de que centralizar poder em um mundo onde o poder tem mudado de mãos impiedosamente, como no caso americano, fez com que o projeto de concentração de poder de Xi Jiping se aprofundasse. O medo era repetir na China os descaminhos voláteis que vemos acontecer na Europa e nos EUA, com sustos eleitorais e instabilidade a todo momento, algo que os chineses abominam.
Essa parece ser uma boa desculpa para uma dificuldade mais profunda dos caminhos que a China teria que seguir para de fato chegar ao patamar de desenvolvimento americano. Hoje ela tem um tamanho de PIB que se assemelha ao americano, mas em 2030 ela terá ainda cerca de 60% do PIB per capita dos Estados Unidos. Para diminuir essa diferença o país teria que apostar em mais abertura e não fechamento, como sinalizou com essa decisão. Vale lembrar que até hoje nenhuma ditadura efetiva se transformou em país rico continuando totalitário.
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A dificuldade nesse caso é acreditar que a centralização de poder permitirá o grau de liberdade necessário para dar o salto tecnológico que os chineses precisam para mudar de patamar de renda. É verdade que hoje a China consegue ser mais eficiente na produção de bens de elevado conteúdo tecnológico, mas cada vez mais o aumento de investimento tem se concentrado nas empresas estatais, e não me parece que será um Vale do Silício estatal que conseguirá dar o salto tecnológico que a China precisa para alcançar os países desenvolvidos.
Para um presidente centralizador inevitável pensar que alternativas de poder começarão a ser pensadas e não demorará para começarmos a ouvir sobre tentativas de golpe de Estado por lá.
O maior problema de Xi Jiping é que ele decidiu ser mais ditatorial em uma década em que o país deixará de ver crescer a enorme massa humana que deixou as zonas rurais em direção às zonas urbanas. Caminho semelhante e em muito menor escala foi visto no Brasil das décadas de 50 a 70. Ao final da década de 60 reformas foram propostas para passar de um crescimento de estoque de capital físico para um de produtividade. Deu certo por pouco tempo, mas a necessidade imperiosa de crescer a qualquer custo para não diminuir o poder dos militares gerou as crises sucessivas na década de 70 que levaram à década perdida dos anos 80. E aqui os chineses parecem ter aprendido infelizmente o caminho do que não fazer. Ao terminar esse processo de transfusão de capital humano direto para as cidades, o crescimento da produtividade demandará maior esforço para crescer. Crescer via produtividade não é fácil, como sabemos, e demandará uma expertise cada vez maior do setor privado que os chineses relutam em seguir ao se ver o crescimento mais vigoroso do setor estatal.
Será inevitável, nesse processo, que a China passe por alguma crise nos próximos anos ao perceber que gerar crescimento não será mais por acelerar o processo de saída das zonas rurais, que foi uma das soluções no final dos anos 90 para continuar o crescimento chinês. A reforma do mercado imobiliário naquele momento permitiu a continuidade do boom junto com mais abertura econômica, processo esse que perdurou mais intensamente entre 1998 e 2008.
O recrudescimento de poder que David Shambaugh chama de hard authotitarianism começou em 2009 e agora foi intensificado com a decisão de controle total de poder nas mãos de Xi Jiping. Na próxima década, com a necessidade de crescimento por produtividade, como um presidente centralizador dividirá poder com um setor privado necessariamente maior caso se queira dar o salto tecnológico?
O que dizer também de um regime totalitário ao redor de países historicamente refratários ao crescimento de poder político chinês, o que tem sido visto mais intensamente na Nova Zelândia e Austrália, mas será inevitável acontecer com Coréia do Sul e Japão?
Tem sido inevitável ouvir em várias esferas que a China é diferente e que democracia é algo que não cabe no modelo chinês. Mas um regime democrático aqui não é uma questão de escolha, mas sim de ser o modelo mais flexível que absorve crises esporádicas nas economias. No limite de uma recessão, troca-se o primeiro ministro, o presidente, ou parte-se até para um impeachment, como conhecemos bem. São soluções que permitem a estabilidade do sistema político e abre espaço para novas ideias na economia. Mas o que dizer de um regime que não permite trocas?
Não cabe muito o argumento de que Xi Jiping fez isso para aprofundar as reformas liberalizantes, o que vai frontalmente contra o espírito da atual decisão. Se fosse o caso tal liberalização já teria começado a acontecer, mas é exatamente o contrário do que tem sido visto desde 2009.
Sempre se fala no modelo de Singapura para ser seguido pela China, mas mesmo aqui há muito mais liberdade política, com vários partidos em competição, sendo que o que está na liderança, enquanto continuar entregando bons resultados seguirá no poder. Quando não entregou resultados tão favoráveis teve resultados políticos mais frágeis em 2011, por exemplo.
Por fim, vale lembrar a colcha de retalhos étnico e linguístico que é a China para o qual analistas mais pessimistas como George Friedman preveem até uma separação física nas próximas décadas pelos conflitos incontornáveis.
Para nós, a China continuará sendo o grande comprador de commodities e investidor que tem sido. As questões aqui colocadas são de longo prazo e ficarão mais claras na próxima década. Mas cada vez mais, e os leitores dessa coluna tem acompanhado minhas dúvidas quanto a China em outros textos, o novo tigre asiático poderá ser mais de papel do que real.
Fonte: “Exame”, 28/02/2018