Desde menino vejo as chuvas de verão. Para dizer a verdade, nasci numa delas e, segundo meu pai, era preciso se deslocar de canoa nas ruas do bairro. Talvez seja por isso minha ligação com essas chuvas. Cobri inúmeras, algumas delas dolorosas, como a da Serra Fluminense, em janeiro de 2011. Até hoje as fotos me emocionam, algumas delas nem tive coragem de publicar.
Às vezes o acaso me aproxima das grandes tormentas. Estava em Florianópolis quando passou o furacão Catarina. Houve uma rápida discussão sobre o nome, ciclone ou furacão? A verdade é que a partir de certa velocidade dos ventos, o nome não importa; é preciso agir.
Ali aprendi que não estávamos assim tão indefesos diante do furacão. Bastava olhar para o Caribe, onde a experiência acumulada daria uma ajuda. Foi possível produzir uma cartilha baseada na experiência caribenha, orientar a população.
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Esta semana vi uma cena fantástica filmada em Belo Horizonte. Pessoas jantando num restaurante e vendo carros arrastados pela correnteza.
Grandes chuvas e eventos extremos podem ter acontecido antes. O problema é que são mais frequentes.
Ao longo desse tempo, não posso dizer que o Brasil está totalmente desprevenido. Novos instrumentos como a internet aumentam nosso poder. Numa grande chuva em 2009, experimentei trabalhar toda a noite no Twitter tentando articular as informações. Dentro dos limites, deu certo, foi possível transmitir informação aos bombeiros sobre pedidos de ajuda, divulgar informações úteis.
Não podemos deter as grandes chuvas. Mas o preparo das comunidades é essencial. Há situações que precisam ser planejadas com antecedência.
Lembro-me de uma inundação em Santo Antônio de Pádua. O hospital ficou impraticável. Inclusive a máquina de hemodiálise. E agora? Quem precisa, quem não precisa de hemodiálise? Como tirá-los daqui? A retirada para o Espírito Santo foi por helicóptero.
Daí a necessidade nesses novos tempos das comunidades se conhecerem, terem lugar fixo para os barcos, a lista das pessoas com dificuldade de locomoção, os pontos de fuga e abrigo.
A preparação é apenas um dado. Você pode convencer mesmo a pessoa que não acredita no aquecimento global, numa terra redonda, em Darwin ou até na vacina. O mais difícil é a discussão sobre o tipo de desenvolvimento que pode atenuar mais ainda os efeitos das mudanças climáticas.
Belo Horizonte foi uma cidade planejada para domar a natureza, canalizando os rios e estendendo sobre eles seu tapete de asfalto.
As chuvas mostraram que esse não é o caminho. A ideia de domar a natureza, submetê-la aos nossos planos intelectuais, acaba nos levando a um destino trágico. Só agora grande parte das pessoas compreende que é preciso se adaptar à natureza, crescer sem violentá-la.
Mas agora o tempo é muito curto. A ideia de adaptação ganha contornos urgentes. É uma pena que essa preparação para os novos tempos não ocupe a agenda dos políticos.
Certamente falarão disso nas eleições, mas como explicar sua ausência junto às comunidades orientando para a autodefesa?
Não será certamente por eles. É a própria sociedade que aos poucos vai assumindo seu papel. Tenho modesta esperança também num jornalismo preventivo.
Estou esperando passar um pouco a emergência e visitar algumas cidades atingidas, como Cachoeiro do Itapemirim, Espírito Santo, com uma pergunta: qual o nível de preparação da cidade quando caíram as chuvas? Dessas respostas podem surgir algumas indicações válidas para um universo mais amplo.
Nasci e possivelmente morrerei em tempos de grandes chuvas. Gostaria muito de introduzir na agenda essa preparação do Brasil para os eventos extremos. É o modo de seguir a lição paterna na tempestade: usar a canoa para conviver com as inundações.
A relativa indiferença diante da chuva está no fato de que sempre cai, como as estações do ano se repetem. Mas as chuvas mudam não só de intensidade. Elas caem num mundo cada vez mais alterado pela ação humana, cheio de armadilhas como os rios canalizados em BH.
Fonte: “O Globo”, 3/2/2020