A declaração atribuída à ex-ministra Marina Silva de que “a sociedade precisa exigir urgência” (Estado, 29/11), referida à questão ambiental, sugere uma dúvida: a urgência a ser exigida teria motivação homogênea?
Vivemos num mundo em parte desenvolvido, rico e consumista e, em grande parte, em desenvolvimento ou subdesenvolvido e pobre. Essa grande parte aspira à ascensão ao consumismo, identificado como símbolo de cidadania pela propaganda que o sustenta. Ascensão praticamente inviável sem danos ao meio ambiente: as demandas de 7 bilhões de habitantes – e crescendo a 10 bilhões em alguns decênios mais -, dramaticamente críticas as de alimentação e energia, comprometem necessariamente a natureza. Muito ou pouco, em consonância com o maior ou menor cuidado humano, mas comprometem. Medidas disciplinadoras e inovações tecnológicas podem moderar o ritmo do comprometimento, mas não o eliminam.
Voltando à frase atribuída à ex-ministra: a grande parte da população global pretendente à ascensão socioeconômica prefere urgência para a melhora de sua vida ou urgência para as medidas redutoras dos danos ao meio ambiente? Prefere urgência para menos carros, menos DVDs e TVs, menos empregos, menos consumo de energia, menos degradação ambiental e menos poluição, ou prefere urgência para a melhora de vida a curto prazo, na contramão de tudo isso?
Manifestações como as de Copenhague não refletem o anseio da humanidade completa: embora à sombra da retórica ambientalista, grande parte dela hierarquiza compreensivelmente suas necessidades presentes – reais (alimentação, por exemplo) ou criadas pela paroxística propaganda da economia moderna – acima da ameaça ambiental de maior prazo. A respeito das manifestações cabe aqui uma observação instigante: elas são praticadas por pessoas em confortável nível de bem-estar no paradigma consumista, que não teria como se sustentar caso a contenção do descalabro por elas preconizado viesse a ser “para valer”…! Estariam aqueles manifestantes sinceramente propensos a abdicar de seu padrão de vida, alcançado no modelo que retoricamente condenam?
Soam mal as posições peremptórias do tipo “os ricos têm que…” Afinal, estamos todos no mesmo barco, sob ameaça do mesmo temporal, que já vem soprando ventos preocupantes. E soa mal a vociferação da culpa alheia como justificativa de erros próprios – algo assim como justificar a destruição da selva amazônica porque a Europa destruiu a “floresta negra”. É justo que o preço dos rumos redutores da ameaça – preço do corte da emissão de gases, da inovação tecnológica e outros – recaia em maior proporção nos países desenvolvidos e ricos, porque estará incidindo sobre um padrão de vida mais alto, mas isso não significa orgia livre para os pobres ou remediados, o Brasil entre eles.
Há nesse imbróglio – o que fazer/qual o sacrifício, quem deve pagar – um detalhe imperativo e complexo, curiosamente omitido da discussão: a interveniência crítica da política democrática no processo. Sempre careceu de fundamento realista a expectativa de que tudo se resolveria com a chegada a Copenhague dos presidentes e chefes de governo: se líderes de democracias, poderiam eles acordar benevolamente medidas corretivas de descalabros ambientais que repercutissem no (des)emprego, nos anseios e no bem-estar imediato dos seus povos? Suas decisões poderiam ser indiferentes ao sistema homologatório inerente à democracia, às eleições? Estariam eles e suas correntes políticas propensos a aceitar perder a próxima eleição, em proveito da defesa de um futuro ambiental em que já serão página virada, na política?
É improvável: a lógica e a dinâmica da democracia não corroboram essa hipótese. Por judiciosos que sejam os políticos – o que não é regra geral -, na política democrática a pressão da conveniência imediata do eleitor que vota hoje tende a prevalecer sobre o interesse virtual do eleitor que ainda não nasceu, sobre a ideia de ameaça ao mundo natural e à civilização que nele construímos – ameaça de fato amedrontadora, a ser concretizada ao longo de um futuro talvez não longínquo, mas posterior à próxima eleição… As manifestações ao estilo Copenhague não significam aval eleitoral ao sacrifício. Havia nelas destituídos e pretendentes à ascensão, de inexorável custo ambiental, maciçamente influentes no mercado eleitoral do mundo subdesenvolvido e em desenvolvimento?
A ameaça ambiental merece atenção e cuidado, mas no fundo ela não entusiasma decisivamente quem luta agora para sobreviver, quem pretende ascender agora no modelo socioeconômico que criamos, caracterizado pelo consumismo comprometedor da natureza! Ou quem simplesmente vive muito bem nele e assim quer continuar, embora esbravejando hipocritamente cuidados ambientais que, se levados a cabo, implicariam moderação de seu padrão de vida. Enfim: poucos, se tanto, discordam da existência do macroproblema ambiental, e já existe realmente razoável consenso global quanto à necessidade de contenção do descalabro em curso, mas o consenso ocorre no diagnóstico, não chega à medicação, cujos custos caberiam sempre aos outros… Na hora do pagamento prepondera o interesse imediato, que se reflete no campo político-eleitoral.
Esta é a realidade política: a sustentabilidade sadia da natureza e com ela a do futuro de maior prazo da humanidade compele a alguma provação hoje, que, por sua vez, induz turbulência política no curto prazo: no mundo democrático, impor privação ao povo, por mais que a lógica e a sensatez a recomendem, significa risco político-eleitoral. Daí a tendência a “empurrar” o preço para os outros: estar-se-á assim simultaneamente salvando o mundo ambiental e, em casa, não comprometendo a próxima eleição… Resolver a equação do presente político x futuro ambiental, com justiça e democracia, é um desafio que vivemos hoje.
(O Estado de SP – 18/12/2009)
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