Foram 132 os pedidos de impeachment protocolados na Câmara dos Deputados desde 1988. Todos os presidentes, de Collor a Dilma, tiveram seus mandatos assim questionados. As principais forças políticas do país fizeram do impeachment uma ferramenta corriqueira para fustigar os governantes. Collor e Dilma não resistiram. Sem conseguirem o apoio de sequer 1/3 dos parlamentares, em pelo menos uma das casas do Congresso Nacional, tiveram seus mandatos interrompidos. Em resumo, dos quatro presidentes eleitos pelo voto popular nesta quadra de nossa democracia, dois foram cassados pelo Senado Federal.
Para alguns, a normalização do impeachment demonstra que este velho instituto está ressignificando o nosso presidencialismo de coalizão, aproximando-nos de um autêntico semiparlamentarismo. Mais do que isso, toma-se essa mutação como algo positivo, pois estabeleceria um contrapeso ao hiperpresidencialismo dominante na trajetória do país.
Desigualdade social, corporativismo e jogo de interesses
Essa leitura, no entanto, guarda inúmeros problemas, especialmente quando levamos em conta duas características estruturais e interligadas da nossa organização social, que são a profunda e persistente desigualdade e o corporativismo extrativista.
Como salienta meu colega de FGV Luiz Guilherme Schimura, no Brasil, o Congresso Nacional, composto por uma miríade de partidos políticos, especializou-se em representar os vorazes interesses de corporações públicas e privadas pelos recursos da Fazenda, cabendo ao presidente, eleito diretamente pelo voto popular, defender os interesses difusos de grupos sociais mais vulneráveis e menos articulados.
Assim, enquanto os partidos e líderes parlamentares lutam pela sua própria sobrevivência, buscando manter ou ampliar as benesses da indústria nacional, do setor financeiro, do alto funcionalismo ou dos sindicatos patronais e de trabalhadores que representam, o presidente, que depende de conquista e da manutenção do apoio da maioria dos eleitores, tem que enfrentar o problema central do bem-estar da maior parte da população, que é predominantemente pobre e desorganizada. Isso, se quiser sobreviver.
O sucesso de Fernando Henrique Cardoso e de Lula deu-se em função de terem conseguido induzir o Congresso, com arte e outras artimanhas, a aprovar políticas que ampliaram o bem-estar da população mais carente, seja por intermédio da estabilização econômica, que reduziu o efeito perverso da inflação sobre a renda dos mais pobres, seja por intermédio do crescimento, que ampliou o emprego e a renda média do trabalhador. Com a contribuição das políticas de distribuição, estruturadas pela Constituição, como saúde, educação e assistência social, a vida das pessoas de fato melhorou.
Da solução dos conflitos em torno dos gastos públicos, da reforma da Previdência, da racionalização do sistema tributário e trabalhista dependerá a sobrevivência, não digo nem o sucesso, do presidente Michel Temer.
O risco é que o semiparlamentarismo à brasileira, capturado pelos partidos que aí estão, aumente ainda mais a probabilidade de que os interesses e privilégios dos grupos entrincheirados no Congresso prevaleçam em detrimento dos direitos e necessidades da maior parte da população, esgarçando ainda mais o tecido social brasileiro.
Fonte: “Folha de S. Paulo”, 17 de setembro de 2016.
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