As múltiplas evidências da realidade bem informavam que a eleição presidencial americana seria milimetricamente decidida. Diante um quadro político agudamente polarizado, potencializado pelo trágico advento do coronavírus, era esperada uma participação popular extraordinária nos destinos da democracia yankee. Corrido o pleito com número inédito de votos, restou demonstrado que o ideal democrático segue vivo e vibrante na América, sendo o povo a única, soberana e insuperável fonte de legitimidade do poder.
À luz dos interesses nacionais, as complexidades e as incertezas do plano internacional aconselhavam, antes de impulsos rasos ou infantis, o exercício sábio da serenidade cautelar. Não havia motivos para se vestir de profeta. Incompreensivelmente, a máxima autoridade política brasileira resolveu se antecipar aos fatos. Em ato institucionalmente temerário, o presidente Bolsonaro resolveu abrir apoio ao candidato Donald Trump, como se sua manifestação tivesse algum peso ou utilidade no deslinde eleitoral além-mar.
Ora, em um dos seus artigos inesquecíveis, a sabedoria de Paulo Brossard, ao analisar grave incidente diplomático a envolver o Brasil e um país vizinho, fez questão de realçar que “exacerbar-se em público não é próprio de chefe de Estado”. A lição do nobre homem público gaúcho é ainda mais apropriada frente a sensíveis situações democráticas de nações amigas. Regra geral, a prudência não aconselha pronunciamentos intempestivos, ainda mais quando se trata da maior potência econômica do Ocidente. Numa sentença reta, o presidente da República não é, não pode ser e jamais será cabo eleitoral de candidato estrangeiro.
Objetivamente, o artigo 84, inciso VII, da Constituição Federal determina que cabe privativamente ao presidente da República “manter relações com Estados estrangeiros e acreditar seus representantes diplomáticos”. Trata-se, aqui, de uma das mais altas responsabilidades executivas, intimamente ligada à estratégia de desenvolvimento nacional, a partir de virtuosas alianças externas. Sobre o ponto, a tradição diplomática brasileira, amparada na insuperável conduta modelar de Rio Branco, elegeu a habilidade relacional, a compreensão poliédrica das circunstâncias e a fina destreza de movimentos como marcas de relevo de nossa respeitada chancelaria.
Sem cortinas, a atual ebulição do mundo vê o ruir de inúmeras estruturas do pós-guerra, sem a definição consistente de um novo bloco hegemônico institucionalizado. Nesse ambiente incerto e cambiante, a precaução com declarações relativas à soberania democrática de nações independentes deveria ser maiúscula, exigindo cálculo reflexivo e ponderação racional. Isso porque as palavras, uma vez ditas, importam, trazendo consequências imediatas ou futuras.
No entreato dos acontecimentos, não é preciso ser um mago para saber que o presidente da República deveria se preocupar prioritariamente com Brasil e com os interesses dos brasileiros. Aliás, se tem tempo para dar pitaco sobre assuntos que não são seus, é sinal de que está deixando de lado os graves e urgentes problemas nacionais. E o mais preocupante: declarações diplomáticas temerárias podem gerar consequências externas negativas, além de embaraços severos nos negócios públicos e privados internacionais.
A eleição americana indica a vitória do candidato democrata Joe Biden. Para evitar a sangria do desgaste internacional, algumas autoridades brasileiras prontamente adotaram um discurso ameno de tom conciliador. Fazem bem, pois quanto maior a velocidade de reconstrução de pontes diplomáticas, menores serão os danos e constrangimentos do infundado pronunciamento oficial. De tudo, fica a certeza de que o desconforto da situação poderia e deveria ter sido evitado. Afinal, sempre melhor calar do que falar o que não se deve.
Categoricamente, a alta dignidade do Palácio do Planalto é incompatível com rompantes impensados, especialmente em delicados assuntos externos de consequências imprevisíveis. Quanto ao futuro, entre as muitas percepções do resultado eleitoral americano, há uma que reluz aos fatos: a truculência política cansa, não encontrando eco na consciência plural da sociedade contemporânea. Em vez de conflitos, as pessoas querem soluções. E não é trocando ofensas que se resolvem problemas políticos.
Fonte: “Gazeta do Povo”, 13/11/2020
Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil