A partir de que momento uma pessoa pode ser punida por um delito que lhe é atribuído? Essa questão, respondida pelo Supremo Tribunal Federal na última quarta-feira (17), tem gerado uma enorme polêmica nos meios jurídicos.
Conforme os parâmetros mais elementares do Estado de Direito, estabelecidos pela Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, em 1789, uma pessoa somente pode ser considerada culpada depois de devidamente julgada e condenada. Antes disso, ela deve ser considerada inocente e tratada como tal.
Com a evolução do Estado de Direito, as constituições democráticas contemporâneas, assim como os tratados internacionais de direitos humanos, passaram a assegurar que não basta uma condenação. A pessoa deve ter o direito de ver seu caso revisto por um tribunal. Assim, só poderá ser considerada culpada após condenação por uma segunda instância. Trata-se da garantia do duplo grau de jurisdição.
A Constituição de 1988, no entanto, foi além desse parâmetro, ao estabelecer que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença condenatória” (artigo 5º., LVII). Não falou nada sobre “duplo grau de jurisdição”. O termo utilizado foi “trânsito em julgado”. O que significa uma decisão da qual não caiba mais recurso.
Como a Constituição previu a existência dos recursos especial e extraordinário, voltados a atacar decisões de segunda instância, que violem a lei ou a Constituição, o término do processo não se dá em segunda instância, mas apenas depois do julgamento dos recursos pelos tribunais superiores .
Foi essa a conclusão do Supremo em 2010 (HC 84.078). O resultado paradoxal, ironizam alguns, é que passou a ser mais fácil prender alguém provisoriamente (antes do julgamento) do que alguém já condenado (desde que haja recursos pendentes no STJ e no Supremo). A consequência dramática é que hoje mais de 40% de nossos presos sequer foram julgados!
Com o objetivo de corrigir essa distorção, o ministro Cezar Peluso encaminhou ao Congresso Nacional, em 2011, uma proposta de emenda que transformaria os recursos especial e extraordinário em ações rescisórias. O habeas corpus ficaria, evidentemente, preservado. Com isso pretendia deixar a Justiça brasileira mais ágil e reduzir a impunidade.
O Congresso nada fez. Contra essa omissão é que o Supremo parece ter se insurgido nesta semana. Para a maioria dos ministros, como os recursos especial e extraordinário, por definição legal, não permitem que os tribunais superiores rediscutam questões de fato e tampouco autorizam que as decisões de segundo grau sejam suspensas, nada impede que sejam executadas, ainda que provisoriamente.
Afinal, é assim que ocorre em grande parte das democracias contemporâneas. Por que deveria ser diferente no Brasil?
Parece sensato. Ocorre, porém, que a Constituição brasileira é diferente das demais. É o “trânsito em julgado” e não o “duplo grau” que estabelece o momento a partir do qual se pode executar uma sentença. É o que está escrito.
Não há dúvida de que a “benevolência” constitucional gera morosidade e favorece a impunidade. Corrigir a Constituição, no entanto, não é função do Supremo.
Fonte: Folha de S.Paulo, 20/02/2016.
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