Previsões e profecias são o sal da terra e o cerne do humano, do demasiadamente humano, como disse um filósofo muito citado e pouco lido. Pois se não compreendemos o que ocorre conosco neste instante, como entender o futuro? Aliás, se não sabemos nada das origens: de onde viemos, como foi que viramos gente com consciência do certo e do errado, quem inventou o beijo na boca, o cafezinho, penico, o cometa, o pôr do sol, a música, a mendacidade e o poder — como prever o futuro? Meu tio Amâncio apaixonou-se. No meio de uma “discussão política”, quando os votos demoravam a ser apurados, acirrando acusações e atiçando suspeitas, na qual engalfinharamse tio Marcelino e tio Mario, ele apenas repetia: eu só sei que estou apaixonado e hei de sempre ser um eterno a p a i x o n a d o . . . “ M a s Amâncio — diziam uns tios — o Lott é um general sem experiência política”…
“Nada disso — negavam aos brados os outros — o homem é o Jânio, que, com sua vassoura, vai ganhar a eleição e varrer os ladrões!” Desses berros eu só guardei um Amâncio balbuciando com a fé de um santo milagreiro que estava apaixonado e que seria sempre um eterno apaixonado.
As previsões políticas dos meus tios falharam. Jânio ganhou a Presidência mas a ela renunciou mergulhando o Brasil numa crise arrepiadora. Mas a profecia de tio Amâncio continua, pois sem ela o mundo não existiria. A crença numa paixão imortal é o sinal mais claro da generosidade e do orgulho que ajudam a enfrentar a certeza do sofrimento e da culpa. Essa dupla que constitui o centro da vida humana.
Todas as previsões se destinam ao fracasso. Elas falam mais dos seus pro-fetas do que de si mesmas. A crença no profetizar é um atributo da onipotência atribuída aos deuses, cujas vidas — pensando bem — são uma nulidade, já que nelas nada acontece. Onde, querido leitor, você prefere estar? Num diabólico colóquio amoroso com sua namorada (que você não pode jamais saber se te ama do mesmo modo que você é apaixonado por ela e vice-versa, daí a dureza do combate); ou no Olimpo, onde a eternidade liquidou passado, presente e futuro, e o sangue que anima a vida é — se de fato existe — verde, como me ensinaram os índios Apinayé, certos de que, após a morte, não há mais excitação, embora se possa pensar em alguma beatitude na forma de uma enorme pasmaceira.
O nada, como dizia Thomas Mann, não me interessa, pois, sem origem ou fim, o vazio que o constitui não tem as dúvidas que levam às profecias, às previsões e aos desejos.
Por isso nada ocorre no nada. O nada, como acentuou Sartre, é impossível de ser entendido por quem vive na plenitude de uma vida feita de tantas dúvidas e projetos quanto as estrelas do céu. Não tenho como conceber o eterno, como são capazes de fazer as pessoas “politizadas” que, tendo respostas para todos os problemas, preveem e profetizam a todo minuto.
Por que profetizamos? Porque somos seres entregues a nossa própria consciência num mundo para o qual não fomos chamados. Um palco onde somos forçados a tomar parte num drama que estava sendo apresentado muito antes de nossa chegada, com o agradável agravante da certeza de que, um dia, iremos dele partir. Shakespeare, de quem eu roubo esta lição, falou desse jogo de entradas e saídas que nos coloca em contato com o sucesso e o fracasso, e com a vida e a morte. É justamente a certeza de que só há este mundo que nos obriga a honrá-lo e a gozá-lo. Pois não haveria honra ou amor se morrêssemos em nome de uma outra coisa, senão o da nossa humanidade que, por ser fabricada por nós mesmos, precisa de profetas e de certezas. Honrar a finitude é perder-se na dedicação fugaz, mas intensa e valente, que faz inveja aos deuses.
Esse amor que deixamos, mesmo sabendo que seremos inevitavelmente esquecidos… Amor que, essa eu aprendi com o Kundera, nos faz flutuar um pouco para, mais adiante, sermos comidos pela terra. Mas que maravilha a breve aparição que nos faz viver pelos outros por causa de um beijo, um ideal ou de um aceno de mão que foi o início de uma família ou de uma paixão impossível, como aconteceu com Romeu e Julieta ou com Joe Bradley e a princesa Ann no filme do William Wyler “A princesa e o plebeu”.
Essa incrível capacidade para ser tudo ou nada obriga a inventar âncoras e freios. E, para os radicais (que sabem tudo), engendra as certezas que eles, como profetas, adoram manipular.
E, no entanto, e apesar das incertezas que fazem parte da vida, basta uma eleição, um populistazinho raivoso com alta popularidade, um novo modismo ou a perspectiva de uma vitória, para desenterrarmos a podridão autoritária — ou cairmos numa gigantesca e irrecuperável frustração.
Tudo isso para dizer que a tal vitória no mínimo insofismável de Dilma no primeiro turno, prevista pelos profetas da mídia, não deu certo. Como não daria certo, leitor, se um marqueteiro nos dissesse que amanhã pela manhã tomaríamos café às 10 horas, porque foi assim que fizemos nas últimas quatro décadas. Basta ler a profecia para contrariá-la. Moral da história: barbas de molho, companheiros e oportunistas. Agora, que o FHC ajuda, ajuda; embora o futuro, como dizia vovó Emerentina, inveterada jogadora de pôquer, a Deus pertença.
Que o diga o Reich de mil anos!
Fonte: Jornal “O Globo” – 06/10/10
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