Vários dos 18 leitores devem ter suas contas domésticas agendadas para pagamento por débito automático. Nesse caso, o banco costuma realizar o pagamento mesmo quando os fundos não são suficientes, desde que o cliente tenha acesso ao chamado “cheque especial”, que, aliás, sugiro fortemente ser evitado a todo custo.
De fato, quem precisa usar o “cheque especial” para pagar as despesas do mês por causa de eventuais insuficiências de fundos tem certeza absoluta de que gastou mais do que poderia.
Caso reste ainda alguma dúvida, a chegada da fatura dos juros cobrados sobre saldo insuficiente deve ser mais do que o bastante para convencer o cidadão de que ele deve dinheiro ao banco e que é bom tratar de cobrir o buraco o mais cedo possível, antes que a bola de neve termine por crescer além do sustentável.
Aparentemente, contudo, o governo federal não se considera sujeito ao mesmo tipo de regra. Conforme noticiado pela imprensa, o Tesouro Nacional não tem depositado recursos nas contas de seus agentes financeiros (Caixa Econômica Federal, Banco do Brasil, BNDES) para cobrir algumas das suas despesas agendadas para “débito automático”.
Isso não faz nenhuma diferença para os beneficiários finais (os que recebem, por exemplo, dinheiro dos programas sociais) porque os bancos federais fazem o pagamento em nome do governo, mesmo quando os recursos não são suficientes.
A contrapartida disso, porém, é o aumento do endividamento do governo federal com seus bancos. E, como ocorre com toda dívida, sobre ela incidem juros a serem eventualmente pagos pelo Tesouro Nacional, ainda que não tão elevados quanto os associados ao “cheque especial”.
Ao contrário do cidadão comum, porém, pelos critérios da contabilidade pública, nem os gastos cobertos pelos bancos federais aparecem entre as despesas nem o saldo negativo dessas contas é classificado na dívida governamental. Sabedor disso, o Tesouro ganhou uma “licença para gastar”, conhecida no jargão como “pedalada”, nome que me causa imensa tristeza dada a minha condição de ciclista amador.
Posto de outra forma, os bancos federais financiam o governo, isto é, emprestam-lhe dinheiro, prática em tese proibida pela LRF (Lei de Responsabilidade Fiscal) e que, anos atrás, esteve na raiz da quebra em série dos bancos estaduais.
Há, é bom que se diga, ainda discussão para saber se a operação descrita acima se encaixa no rol de operações vedadas pela LRF (acredito que sim, porém não sou especialista na parte legal), mas resta pouca dúvida de que o espírito da coisa contraria frontalmente as boas práticas de gestão fiscal.
A começar pela falta de transparência. Não se trata da primeira vez (nem certamente a última) em que o Tesouro Nacional é pego às margens das normas contábeis, disfarçando de forma nada discreta resultados fiscais bem aquém das metas fixadas pelo próprio governo federal. Isso só serve para aumentar o descrédito quanto às estatísticas públicas, um retrocesso considerável nos nossos padrões de governança.
Além disso, porém, o fato é que – mesmo sem terem sido contabilizados – os gastos ocorreram, assim como seus efeitos sobre a atividade econômica, a inflação e demais variáveis de interesse. Em particular, a inflação no teto da meta (quando não acima dele) se deve, em boa parte, precisamente às persistentes estripulias com as contas públicas.
A verdade é que a política fiscal, apesar das promessas de austeridade do governo e dos supostos cortes de gastos anunciados no começo do ano, tem sido não apenas bem mais frouxa do que a observada no ano passado mas ainda pior do que os números oficiais nos mostram.
Nesse contexto, a afirmação do ministro da Fazenda (“As nossas contas públicas estão absolutamente organizadas”) chega a ser um acinte aos que têm por ofício acompanhar nosso desempenho fiscal. Assim como na guerra, na época de eleição a primeira vítima é a verdade.
Fonte: Folha de S.Paulo, 27/08/2014.
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