Em entrevista ao Instituto Millenium, o cientista político Carlos Pereira, professor da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getúlio Vargas (Ebape/FGV), fala sobre o uso político do Bolsa Família nas eleições deste ano. Para Pereira, programas de transferência de renda deveriam ter um caráter temporário e contar com o apoio de políticas complementares — como projetos de capacitação técnica — para que o beneficiário não dependa do Estado indefinidamente. “O programa deve ter caráter emergencial, transitório, com critérios muito claros de avaliação e de decisão ou não da permanência dos usuários”, diz o professor.
Sobre a democracia brasileira, Pereira acredita que os eleitores amadureceram, embora o clientelismo continue presente no cenário político brasileiro. “A saída para diminuir os graus de oportunismo político e clientelismo é competição política e fortalecimento das instituições de controle”, explica ele. Leia a entrevista e acesse também a página especial do Instituto Millenium “Eleições 2014“.
Instituto Millenium: Recentemente, em uma entrevista concedida a um veículo de imprensa, o senhor afirmou que “o governo vai se fiar nos programas de transferência de renda” na campanha eleitoral. Na opinião do senhor, qual será o peso do Bolsa Família e dos programas de transferência de renda nessas eleições?
Carlos Pereira: O peso vai ser grande porque o programa de transferência de renda já se mostrou bem sucedido na geração de votos na reeleição de Lula, em 2006, e na eleição de Dilma Rousseff, em 2010. O Bolsa Família é um dos poucos programas sociais em que o governo federal tem sido capaz de reclamar o crédito. Normalmente, em relação à às políticas sociais, os governos municipais e os estaduais é que demonstram capacidade de se identificar com os programas e, consequentemente, obter crédito político com eles.
Mas o Bolsa Família foi muito associado à iniciativa do PT (Partido dos Trabalhadores), em especial do governo Lula. O programa ficou vinculado à iniciativa do governo federal e isso tem gerado retornos eleitorais crescentes para o governo. Então, é esperado isso [que o governo se fie nos programas de transferência de renda na campanha eleitoral] de forma muito forte. Eu não acredito que o impacto do Bolsa Família irá diminuir, mesmo diante de uma inflação. Nós estamos tendo perda do poder de compra do salário das pessoas e também do Bolsa Família, mas as pessoas, ainda assim, associam o programa, positivamente, ao governo do PT. Então, acho que isso terá retornos e dividendos eleitorais, com certeza.
Imil: Mas há uso político deste programa.
Pereira: Não resta dúvida. Toda ação política de um governo, teoricamente, é objeto da política. É natural que os governos queriam se utilizar estrategicamente dos seus acertos, de suas iniciativas assertivas. Então, dado que o Bolsa Família conseguiu ter uma grande penetração e, embora o programa não tenha sido criado pelo PT, o governo conseguiu unificar o programa e dar a ele escala fenomenal, – estima-se que quase 40 milhões de famílias são atingidas pelo Bolsa Família – é natural que o governo se fie nessa iniciativa.
Na verdade, é uma das poucas coisas que o governo Dilma tem para se fiar porque a gestão macroeconômica vem muito débil, a inflação reapareceu e o crescimento econômico está muito baixo. O governo não tem o que apresentar. Onde é que vai se centrar o curso fundamental do governo? Vai se centrar nas iniciativas de inclusão social — o Bolsa Família, sendo o carro chefe, mas em outras iniciativas também, como o Prouni e cotas para universidades. Enfim, o governo vai tentar obter dividendos políticos e eleitorais com as agendas inclusivas.
Imil: Em que regiões do país o Bolsa Família tem maior capacidade de influenciar os eleitores? Por quê?
Pereira: No Norte e Nordeste porque é onde estão localizados os maiores contingentes de beneficiados, embora também tenham muitos usuários do programa no Sudeste. Mas é no Nordeste onde está a maior parte dos beneficiados. Não por acaso é justamente nessa região onde a presidente Dilma está melhor posicionada nas pesquisas. Quanto maior o grau de escolaridade, quanto maior o grau de renda dos eleitores, que são justamente os não usuários desses programas sociais, menor a intenção de votos para o PT. E, nos lugares em que se tem menor renda e menor escolaridade, ou seja, justamente onde vivem a maior parte dos usuários dos programas de transferência de renda, a maior intenção de voto se revela favorável ao PT. Então, isso espelha claramente que o governo tem feito uso político do Bolsa Família.
Mas eu não vejo isso, necessariamente, como um problema. Faz parte da política. O governo vai tentar naturalmente buscar o reconhecimento das suas iniciativas. Pode-se até discordar do conteúdo da política, mas é normal que o governo busque um reconhecimento político dentro das suas iniciativas.
Imil: Mas não teria um limite para isso? No Brasil, tem-se sempre a impressão de que as iniciativas se personificam na figura da pessoa que está no poder. Não deveria ser uma política de Estado?
Pereira: Na realidade, o Bolsa Família foi iniciado pelo governo Lula. Não é uma política de Estado, embora o principal candidato da oposição tenha deixado claro, até o momento, a sua intenção de torná-lo um programa de Estado. Mas até o momento não é. Não existe garantia institucional da permanência do Bolsa Família, em que pese que eu não vejo nenhum risco, de quem quer que seja o eleito nas eleições de outubro não dar continuidade ao programa. Acho que a probabilidade de que o programa tenha continuidade é enorme. O programa, de fato, gera uma renda emergencial para um setor da população que tem baixas fontes de renda e isso tem ajudado a melhorar o poder de compra desses estratos sociais.
É difícil responder sua pergunta sobre qual o limite da utilização política de uma iniciativa do governo. Teoricamente não existe limite. O limite é dado pelo próprio mercado político. Moralmente e legalmente, o governo vai querer fazer isso. Agora, até quando é legítimo, o próprio mercado político vai definir isso. A sociedade vai responder positivamente ou negativamente diante dessa autorização política. Se o governo começar a fazer um uso excessivo desse instrumento pode ser que a população deixe de reconhecer, ache demais. Mas não existe uma iniciativa legal que mostre isso.
Imil: O que deveria reger um programa de transferência de renda?
Pereira: Eu acho que os programas de transferência de renda devem ter, necessariamente, um caráter temporário. O fundamental é criar as condições para que a população que hoje necessita do programa não venha a precisar para sempre. Então, os programas precisam de contrapartida, não só no que diz respeito a colocar o filho na escola ou vaciná-lo, que hoje são as contrapartidas que o Bolsa Família exige, mas acho que o programa tem que ter dia para iniciar e para acabar. E, nesse período o governo deve avaliar se aquele usuário, de fato, continua com a necessidade de receber o benefício, além de outras políticas complementares, principalmente no que diz respeito ao treinamento, à capacitação técnica, para que amanhã o beneficiário ele possa ser um empreendedor, um profissional liberal. Há exemplos de beneficiários do Bolsa Família que tiveram grande ajuda do governo no início do programa, que conseguiram montar seu próprio negócio e viver sem depender do programa. Esse é o objetivo final do Bolsa Família. Não é tornar as pessoas dependentes do Estado, mas atende-las de forma emergencial. Então, o programa deve ter caráter emergencial, transitório, com critérios muito claros de avaliação e consequentemente de decisão ou não da permanência dos usuários.
Imil: É o que chamam de porta de saída…
Pereira: Exatamente. Não pode acontecer um jogo de dependência ad infinitum de usuários do programa. Acho que isso cria vícios, uma relação pouco competitiva, que é ruim para a própria sociedade.
Imil: O senhor acha que o patrimonialismo e o clientelismo continuam sendo marca da política brasileira? Por quê?
Pereira: Sim. O sistema político brasileiro é muito inclusivo. Ele cria canais e poucas barreiras à entrada. Todos os interesses na sociedade que quiserem alcançar algum grau de representação no jogo político vão fazê-lo, com baixíssima chance de não dar certo. O jogo é muito aberto, tem muita fragmentação. Por outro lado, diante dessa fragmentação, as relações entre eleitor e representante, ocorrem de forma direta. O representante político é premiado ou punido pelo eleitor muito em função da capacidade desse representante de levar benefícios diretos para o eleitor – benefícios em termos de políticas locais. Então, dado que o jogo estabelece essa conexão direta entre o eleitor e o representante, e os partidos são muito fracos na esfera eleitoral, é natural esperar que a lógica entre eleitor e representante seja a lógica de clientela.
Imil: Mas o eleitor está mais maduro ou não?
Pereira: Não resta dúvida que sim. O eleitor brasileiro está muito mais maduro. Ele tem fontes variadas de informação, ele tem informações de sua rotina, ele sabe se o seu bairro está melhor, se as condições de transporte melhoraram, o tempo que leva pra chegar ao trabalho, se o bairro está mais violento ou não, se tem inflação… Consequentemente, ele utiliza esse conjunto de informações para decidir se o governante de plantão está se portando de acordo com os seus interesses ou não. Acho que o eleitor brasileiro está bem ativo, participativo e demandante dos governos. Eu estou muito satisfeito com o grau de competitividade e incerteza que a democracia brasileira gera.
Um dos critérios fundamentais para você mensurar a saúde da democracia é o grau de incerteza de quem seria o vencedor do processo eleitoral antes que o jogo acabe. Nós já temos isso no Brasil, um grau de incerteza grande. Por mais que alguns institutos de pesquisa coloquem a presidente Dilma como a primeira colocada nas pesquisas, principalmente agora, depois da entrada da Marina Silva no jogo eleitoral, não só temos incerteza em relação ao potencial vencedor das eleições, mas também temos incerteza quem será capaz de entrar no primeiro turno. Isso é muito salutar porque vai aumentar a competição política e o grau de informação para o próprio eleitor. Os candidatos vão ter que se expressar mais, tentar convencer mais, ou seja, todos se nutrem com esse processo competitivo incerto.
Imil: E a qualidade dos políticos também tende a se elevar…
Pereira: Exatamente. Eles vão ter que prestar contas, teremos mais oposição e as pessoas vão cair mais em cima de erros potenciais cometidos pelos governantes. E se a oposição virar governo também vai ser cobrada. A qualidade da democracia ganha muito com a incerteza do jogo.
Imil: Então, houve um amadurecimento da democracia brasileira?
Pereira: Não resta dúvida. Estamos muito melhores do que há 30 anos. Temos uma democracia muito estável, consolidada, com calendário sem sobressaltos. Não existe nenhuma suspeita de fraude e nenhum perdedor se insubordina ao resultado do jogo. Isso é muito positivo. Eu estou muito otimista em relação à qualidade da nossa democracia e à qualidade do nosso processo eleitoral.
Imil: O que precisa ser feito para afastar o fantasma do paternalismo da política nacional?
Pereira: Eu acho que é preciso competição política e fortalecimento das instituições de controle. Em todas as minhas pesquisas, fica evidente que o grau de ação das instituições de controle – o Judiciário, o Ministério Público, os tribunais de contas, a Polícia Federal – é diretamente influenciado pela competição política, pela alternância da elite no poder. Quanto menos a elite se alterna no poder, mais dócil tendem a ser as instituições de controle. Quanto mais competição política, mais alternância das elites no poder, mais ativas serão essas instituições de controle e, consequentemente, menos espaço terão os políticos para se comportar de forma populista. A saída para diminuir os graus de oportunismo político e clientelismo é competição política e fortalecimento das instituições de controle.
Imil: Há muita alternância de poder no Brasil?
Pereira: A gente tem tido sim. Para uma democracia jovem como a nossa, estamos tendo alternância e também têm surgido terceiras forças no mercado político. E na esfera subnacional há uma grande alternância. Em raríssimos estados a mesma elite política domina há muito tempo. Atualmente, acho que a única exceção forte é São Paulo. A grande maioria dos estados brasileiros tem alternância muito grande, o que garante um frescor para as disputas políticas e uma maior tendência para que as instituições de controle sejam mais ativas.
Imil: Então, é uma questão de manter e seguir amadurecendo para que o paternalismo saia de cena?
Pereira: Exatamente. Os Estados Unidos, por exemplo, são considerados a democracia mais estável mais antiga do mundo. Mas o processo político americano também se dá muito por meio de trocas e benefícios de legisladores para eleitores no seu distrito eleitoral e, consequentemente, os eleitores pagam em retorno, ocorrendo o benefício eleitoral. Então, necessariamente o eleitor recompensar eleitoralmente o político por uma iniciativa que julgue positiva não é ruim. Faz parte da política. A política quer, justamente, premiar os políticos que realizam as preferências dos eleitores e punir os políticos que não a realizam. Essa é a razão de ser da democracia. O problema – da América Latina e não apenas do Brasil – é que elites políticas, uma vez que chegam ao poder, têm dificuldade de sair. Nós temos que estar muito atentos para esse risco. Isso é deletério para a qualidade da democracia, é deletério para a capacidade das instituições de controle de se tornarem ativas e vigilantes diante dos possíveis desvios de comportamento. O segredo está no incentivo à competição, à alternância no poder e, consequentemente, na profissionalização das instituições de controle. Essa é a saída.
O Bolsa Família beneficia entre 14 a 15 milhões de famílias, que são um pouco mais de 50 milhões de beneficiários individuais.
O Bolsa Família, deveria ser um programa de inclusão social, algo que existe em todos os países desenvolvidos, mas este não tem passado de um programa de transferência de renda, com a finalidade de geração votos para a reeleição de um governo petista.