“Nem agora nem em outras épocas, as Nações detentoras do melhor clima e do melhor solo têm sido as mais ricas ou as mais poderosas” (John Stuart Mill, 1848)
Inicio hoje um convívio regular com os leitores do GLOBO. Embora tenha sido um articulista bissexto nesta página desde que comecei a escrever para jornais há quase 25 anos, agora passarei a frequentar com assiduidade este espaço. Pretendo fazer desta possibilidade que o jornal me brinda um espaço de divulgação de ideias e propostas de fundo econômico, mas expressas de uma forma que — espero — o leitor leigo possa compreender, procurando minimizar os vícios de linguagem próprios do “economês”. O tempo dirá se tiver sido bem-sucedido.
Escolhi como primeiro tema deste nosso encontro mensal o aproveitamento das receitas do pré-sal, o que é natural, considerando que ele moldará os destinos do país pelos próximos 20 a 30 anos. Resumidamente, minha mensagem é: o país corre o risco de cometer um erro maiúsculo. Para que o leitor entenda a explicação, leve em conta os seguintes dados: a) o setor público brasileiro tem uma dívida líquida (tirando os ativos financeiros) de 40 % do PIB e o Governo tem uma dívida bruta de 55% do PIB; b) o déficit público este ano deverá ser de mais de 3% do PIB, maior que o do ano passado; c) a despesa de juros da dívida pública em 2011 deve ser da ordem de 6% do PIB; e d) o Governo se endivida no mercado pagando a taxa Selic ou, dependendo do título, às vezes até mais do que isso.
Nessas circunstâncias, a descoberta dos recursos do pré-sal aproxima o país da situação de um indivíduo que todo mês ganha 100, gasta 103, tem uma dívida enorme no cheque especial e um belo dia ganha na loteria (embora tenha ainda que resolver o problema de que o bilhete premiado está enterrado bem fundo no jardim…). O que as boas práticas de prudência financeira recomendariam fazer nesse caso? Não é preciso ser nenhum especialista em finanças para saber a resposta: sair do cheque especial.
Pois bem, se o Brasil enveredar pelo caminho no qual muitos querem que transite nos próximos anos, o que estaremos fazendo equivalerá na prática a usar ainda mais o cheque especial. Por que? Ouçam-se as propostas que circulam na boca cheia de mel de muitos políticos e vai-se perceber que, quando eles usam palavras adocicadas para soarem elegantes aos ouvidos do (e)leitor, a rigor o que podemos estar assistindo é à reprise de tantos outros casos em que, sob a justificativa de que “há demandas que precisam ser atendidas”, diversos países, ao longo da História, desperdiçaram a chance de colocar um fim a uma longa era de problemas fiscais. Vale, a propósito, citar a frase pertinente de um ex-ministro do Petróleo da Venezuela, na euforia do país nos anos 70 e antevendo o desperdício de gastos pouco criteriosos que viria: “Daqui a 20 anos, o petróleo será a nossa ruína.” Dito e feito…
Se o Governo paga 6% do PIB de juros, é porque a) tem uma dívida alta; e b) o mercado não está convencido que seja um bom negócio emprestar ao Governo a juros muito baixos. Diante disso, não há nada, rigorosamente nada, olhando para o conjunto dos fatores como um todo e pensando não apenas no presente, mas também no futuro, que seja mais conveniente para o país do que o Governo pagar as suas dívidas. Com isso, ele depois vai ter uma carga de juros menor e ajudará por sua vez a minorar o risco de emprestar ao próprio Governo, contribuindo assim para diminuir a taxa de juros. Qualquer outra alternativa será equivalente a que o indivíduo que recebe 100 e gasta 103, ao ganhar na loteria, acabe por gastar mais, aplique os recursos na caderneta de poupança e continue “pendurado” no cheque especial. Sim, porque ter um déficit público de 3% e utilizar recursos extras da receita para aumentar o gasto público é exatamente equivalente a isso. Governo que tem déficit e uma dívida elevada e recebe recursos extras não deveria criar um fundo de seja lá o que for. Governo que tem déficit e recebe recursos extras deveria, pura e simplesmente, fazer superávit fiscal e pagar as suas dívidas.
Será que, em 2040, depois do fim da festa e já sem petróleo, nossos filhos terão que reconhecer que, mais uma vez, a frase de John Stuart Mill, dita em torno de 200 anos antes, terá se revelado profética?
Fonte: O Globo, 21/02/2011
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