Passada a temporada dos balanços do governo Lula – os balanços jornalísticos, bem entendido, posto que o julgamento da História só virá mais tarde -, uma quase unanimidade se sobressaiu. De positivo, a imensa maioria dos analistas registrou que o ex-presidente se saiu bem, muito bem, em pautar o tema da exclusão social como prioridade de sua gestão. Ele ampliou as ofertas de emprego, contribuiu para a elevação dos padrões de consumo dos mais pobres e também para a abertura das vias de acesso à universidade para famílias que, até então, estavam alijadas dos cursos superiores. Todos elogiaram o compromisso do ex-presidente com a estabilidade da moeda e, também, com o crescimento econômico. O Brasil é hoje uma estrela entre as nações, está mais confiante, mais otimista e mais feliz.
Do lado negativo, a avaliação também é praticamente unânime: o governo que se encerrou em 31 de dezembro de 2010 deixou a desejar em matéria de rigor e intransigência no combate à corrupção. Não que tenha sido complacente em todos os níveis com os ladrões, antigos e novos. O saldo, aqui, não é linear, muito menos óbvio: é complexo, perpassado de contradições. No plano administrativo, burocrático, mais impessoal, os órgãos de fiscalização vinculados ao Poder Executivo funcionaram satisfatoriamente. Há poucas semanas, a Controladoria-Geral da União (CGU) divulgou um relatório com números expressivos: entre 2003 e 2010, nada menos que 2.969 servidores públicos, na esfera federal, foram punidos por má conduta. Excelente. Acontece que, no plano dos caciques, deu-se um clima de congraçamento entre o presidente da República e notórios representantes das velhas e piores práticas patrimonialistas da História da República. Em vários episódios em que o malfeito era evidente, os grandes nomes sofreram desgastes, mas não foram punidos. Em lugar disso, foram afagados e, gradualmente, reabilitados pelo chefe de Estado. Nesse quesito, enfim, o governo Lula decepcionou.
Tudo isso, claro, já foi dito e repetido pelos jornais. O que não foi devidamente registrado, porém, é que, para muitos, inclusive para alguns que integraram o governo que acabou de se encerrar, não havia outra escolha. Para esses, não é correto dizer que Lula foi bem nos campos social e econômico, mas foi mal no que se refere à ética. Eles não usariam a adversativa. Fariam outra formulação. Diriam que Lula conseguiu as realizações que conseguiu nos campos social e econômico exatamente porque soube ser flexível com o que julgam ser formalidades do discurso ético. Acreditam que sem essa flexibilidade, ou mesmo sem essa frouxidão calculada, a governabilidade resultaria inviável e nada teria “avançado”. Eis o ponto.
Chegamos aqui a uma das pedras fundamentais da nossa cultura política. Uns mais, outros menos, todos nós cultivamos a crença de que a ética pública é uma espécie de puxadinho de luxo que se constrói quando as prioridades já foram atendidas. Fora disso, atrapalha. Exigir prestação de contas a toda hora serve apenas para atrasar as obras e os negócios – basta ver as sucessivas refregas verbais entre o governo anterior e o Tribunal de Contas da União (TCU), em 2009 e 2010. Segundo essa mentalidade, a ética pública é um item cosmético, um toque de acabamento. Na grande obra que é a gestão do Estado, ela deve vir depois, apenas para conferir um aspecto de coisa civilizada, responsável, a processos que, se necessário, não hesitarão em empregar métodos selvagens (que permanecerão, para sempre, secretos). Parece grosseiro, parece primitivo, mas vivemos num país em que empresários, em grande número, e boa parte dos políticos, qualquer que seja o partido, pensam assim.
Será difícil quebrar o encanto dessa pedra fundamental. Ela constitui uma ilusão pétrea do pragmatismo pátrio, inspirando as práticas políticas. Sua superação não virá por decreto, mas aos poucos, à medida que os agentes políticos e econômicos internalizarem a noção de que o resultado dos processos é inseparável da qualidade de cada uma de suas etapas anteriores. Na administração pública democrática, não é verdade que os fins justificam os meios – a verdade é o oposto disso: os meios é que determinam os fins.
Em meio a essa cultura desalentadora, um sinal animador, bastante positivo, veio com a mensagem da presidente Dilma Rousseff para a sua primeira reunião ministerial, há duas semanas. Ao menos no plano do discurso, sua orientação reconcilia ética e eficiência. Podemos aqui resumi-la em cinco palavras: gestão competente é gestão transparente. Dilma Rousseff, segundo seus assessores, tem dito que não quer a virtude dos homens, mas a virtude das instituições. Nada contra a virtude das pessoas, por certo, mas, de fato, a eficiência da máquina pública só pode ser medida se houver transparência – e transparência é um atributo das instituições virtuosas. O resto é sofisma ou oportunismo.
Ou ainda uma cilada – na qual pode ter caído, em parte, o próprio governo Lula. A História responderá. À imprensa, que escreve a História a quente, cabe registrar a primeira impressão: Lula foi bem “no social”, mas fraquejou “na ética”. À História, que reescreve o que a imprensa anotou no calor da hora, caberá julgar se o governo Lula ampliou as garantias sociais porque soube costurar alianças com oligarquias carcomidas ou se, inversamente, conferiu uma inestimável sobrevida ao patrimonialismo (o velho e o novo) mediante pequenas concessões sociais.
Enquanto o veredicto da História não vem, a nova presidente se diferencia com discrição. Ela parece saber que um governo a que falta transparência é sempre um governo de caráter duvidoso e, em lugar do duvidoso, fala em metas e métodos claros. Se essa visão prosperar, teremos uma inovação política. E menos atrapalhação.
Fonte: O Estado de S. Paulo, 27/01/2011
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