Dou continuidade à minha série de artigos com propostas de reforma da Previdência, na qual já abordei as questões das novas regras para quem ingressar no mercado no futuro, da necessidade de uma regra de transição para quem já está na ativa, da idade de quem se aposenta por idade, das diferenças entre gênero, do número de anos de contribuição e das pensões. O tema de hoje é a aposentadoria rural.
Cabe um esclarecimento inicial importante: sou a favor da tese de que este tipo de benefício deveria sair das contas do INSS e passar a constar das despesas do Tesouro, assim como já ocorre com a rubrica da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS). Seria uma medida lógica, dada a natureza essencialmente assistencial do benefício. Entretanto, devo também esclarecer que tal mudança, na prática, ainda que desse mais transparência à prestação de contas, seria fiscalmente irrelevante. Não é difícil de entender por que: ao consolidar as contas do INSS com as do Tesouro no governo central, tanto faz se uma despesa é de um ou de outro, uma vez que são todos gastos do governo, de modo que o resultado primário continuará sendo o mesmo. Aqueles que se escudam na suposta inadequação das regras contábeis para se opor a qualquer reforma previdenciária ignoram que o problema principal com o qual estamos lidando é físico, e não contábil: no Brasil, proporcionalmente, há cada vez mais idosos por pessoas em idade ativa e esse fenômeno irá se acentuar nas próximas décadas. Quem deixa de considerar isso, simplesmente não entendeu a essência do problema.
O que nos mostra a realidade dos números? Em 1988, a Constituição dobrou o piso previdenciário pago aos aposentados rurais. Em consequência, entre 1991 — ano no qual o dispositivo constitucional foi regulamentado — e 1994, o número de beneficiados no meio rural se multiplicou por dois. A explicação é que há um “pedágio” a pagar para ter acesso ao benefício: o indivíduo deve se deslocar do meio rural até a repartição do INSS, apresentar uma série de papéis e esperar um tempo pela concessão do benefício. Com uma aposentadoria vista na época como “uma merreca”, não valia a pena ter esse trabalho. Já quando a aposentadoria tornou-se mais atraente, os guichês do INSS ficaram cheios de gente interessada em receber o que era um direito. Por fim, nos primeiros três períodos de governo pós-estabilização, o poder aquisitivo do salário mínimo se multiplicou por 2. Com o piso passando de meio para um salário mínimo, incidindo sobre o dobro de beneficiados e com o valor real do salário mínimo dobrando, o resultado foi que a despesa rural real foi multiplicada por um fator 8. Uma despesa que era pouco significativa tornou-se com o passar do tempo, na prática, o maior benefício assistencial do país.
O lado bom é que a chaga da miséria dos idosos no meio rural desapareceu como tragédia social: não há mais miséria entre os idosos no campo no Brasil de hoje — e isso faz um bem enorme ao país. O outro lado da moeda é que a despesa com benefícios rurais, que já em 1997 alcançava 0,7 % do PIB, 15 anos depois, em 2012, deve atingir 1,6 % do PIB.
O Barão de Itararé dizia que “não é triste mudar de ideia. Triste é não ter ideias para mudar”. A frase cai como uma luva para o país refletir acerca do tema. O que é que deveria mudar? O problema central está no Artigo 201 da Constituição, que diz “é assegurada aposentadoria no regime geral de previdência social, nos termos da Lei, obedecidas as seguintes condições”, onde no item II constam tais condições: “65 anos de idade, se homem e 60, se mulher, reduzido em 5 anos o limite para os trabalhadores rurais de ambos os sexos.”
A justificativa para este último dispositivo tem raízes históricas e se relaciona com uma realidade na qual, primeiro, a miséria rural na terceira idade era ainda muito presente; segundo, a expectativa de vida era muito inferior à atual; e
terceiro, a agricultura brasileira era ainda relativamente primitiva. Hoje, com a miséria rural na terceira idade deixando de ser relevante; com uma expectativa de vida muito maior; e com uma agricultura muito mais moderna que nos anos 80, a cláusula associada aos rurais ficou em parte anacrônica. Cedo ou tarde, a excepcionalidade da aposentadoria rural mereceria ser revista.
Fonte: O Globo, 10/09/2012
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