De quando em quando, aparece alguém dizendo que, em situações extremas, a tortura de um prisioneiro pode estancar o mal e promover o bem. Os defensores desse sadismo de resultados costumam usar como argumento a hipótese da bomba-relógio. A historinha que eles contam é mais ou menos a seguinte: a polícia prende um terrorista que instalou uma bomba-relógio numa grande cidade; em questão de quatro ou cinco horas, milhões de pessoas morrerão e, como não há tempo de deslocar a população para fora do alcance da bomba, o único jeito é torturar o sujeito até ele dizer onde escondeu o explosivo, que, aí sim, será desativado pelos agentes de segurança. Nesse caso, concluem, a tortura seria justificada.
Mais recentemente, têm aparecido até filmes para nos convencer disso. Um deles, Ameaça terrorista (Unthinkable, 2010), se baseia precisamente na hipótese da bomba-relógio: um torturador (interpretado por Samuel L. Jackson) se encarrega de arrancar de um terrorista fanático a localização de artefatos nucleares instalados em metrópoles americanas. Como o torturador do filme esbanja competência fria – e como Samuel L. Jackson é um ator de carisma quente, adorado pelo público -, seus métodos levam a melhor. Moral da história: a tortura pode estar do lado dos mocinhos. Em outras palavras, existe a “tortura do bem”.
O pano de fundo da intensa propaganda hollywoodiana é a tal Guerra ao Terror, movida pelo governo americano contra organizações extremistas, como a al-Qaeda. Desde os atentados de 11 de setembro de 2001, a mentalidade de Hollywood mudou bastante. Nos filmes mais antigos, torturadores eram apenas um signo do mal, gente baixa, um tipo de verme cinematográfico. Agora, o seviciador de vítimas algemadas pode ser um pai de família altivo, sóbrio e amoroso – tão abnegado e generoso que, pelo bem de sua pátria, é até mesmo capaz de fazer sangrar e padecer um ser humano indefeso. Vide Samuel L. Jackson em Ameaça terrorista. Ele não tortura por gosto, mas por heroísmo e abnegação.
No contexto da Guerra ao Terror, esse deslocamento do signo da tortura – que migra do polo do mal para o polo do bem – foi essencial para a Doutrina Bush. Agora, se tornou a menina dos olhos de fãs de cinema e também de intelectuais. Na semana passada, ÉPOCA publicou uma entrevista providencial e esclarecedora com Mark Bowden, autor do livro A caçada, sobre a operação de captura de Osama bin Laden por soldados americanos – tema que também virou filme (A hora mais escura). Lá pelas tantas, o entrevistador, o jornalista Rodrigo Turrer, pergunta se os interrogatórios violentos da CIA ajudaram na caçada. Bowden responde: “Foram eficazes para localizar terroristas e prendê-los. Isso, porém, não justifica o uso dessas técnicas”. Ele argumenta que, muitas vezes, a brutalidade nos interrogatórios gera “erros, mentiras e desinformação”. E completa: “Os dados para a arrancada final que encontrou Bin Laden não foram obtidos pela tortura, mas por investigação minuciosa”.
Bowden tem razão. Essa história de que a tortura seria mais eficaz do que a investigação policial bem-feita é apenas um mito tecnocrático. Fora isso, atentar contra a integridade física de um prisioneiro constitui um ato incompatível com a civilização, seja qual for a situação hipotética, imaginada pelos entusiastas do pau de arara. Cenários extremos não valem como argumento. São ilógicos, irracionais. Matar é crime grave em qualquer sociedade, em qualquer código de conduta – não obstante, numa situação extrema, um cidadão de bem pode se ver impelido a esganar seu semelhante. Um pai que, dentro de sua própria casa, vê um filho ser agredido, humilhado ou barbarizado por um assaltante pode ter impulso de matar o agressor. Se fizer isso, terá de responder depois, nos tribunais, por seu ato, pois matar é crime e continuará sendo crime. Por mais que compreendamos as razões desse pai, o assassinato não deixará de ser crime. Se escrevêssemos as leis da civilização de acordo com hipóteses de urgência absurda ou de pressão psicológica total, a lei autorizaria o homicídio, as infrações de trânsito (todas elas) e os safanões de delegados em ladrões de galinha.
Dizer que a tortura é um crime não significa dizer que ela deixará de acontecer para sempre. Significa apenas que, quando ela acontecer, o torturador será devidamente julgado e punido. Pretender dar a ele uma carta branca, por antecipação, equivaleria a fazer de Sérgio Paranhos Fleury nosso ministro da Justiça. Seria o mesmo que transformar o crime na única lei verdadeiramente eficaz.
Fonte: revista Época
Como é linda a utopia.
Concordo plenamente!