Nelson Rodrigues dizia, com calculado cinismo, que a única possibilidade real de consciência é o medo da polícia. O grande dramaturgo não viveu para ver o dia em que nem o medo da polícia serviria como fronteira ética. À luz do dia, representantes da casta sindical que governa o Brasil informam que não têm medo de nada. Nem mesmo de articular a ressurreição de Delúbio Soares, uma das estrelas do mensalão – o episódio que, em dimensões inéditas, transformou a política em caso de polícia.
O cinismo de Nelson é brincadeira de criança perto da evolução moral do PT. O partido, que completará 12 anos no poder – envelhecido no puro malte de Brasília –, já trabalha para estender esse reinado para 16 anos, aproximando-se do recorde da era Vargas. Nessa marcha firme, vai-se impondo o seguinte princípio ético: o que a opinião pública engolir, está valendo.
Não foi à toa que Luiz Inácio da Silva se despediu da Presidência avisando que iria desmontar “a farsa do mensalão”. Em tese, o filho do Brasil não precisaria, do alto de sua popularidade sobre-humana, gastar um minuto com o capítulo negro do valerioduto. O povo já lhe dera o habeas corpus vitalício. Mas apagar a existência do mensalão é importante a médio prazo. A companheirada vai precisar de uma ficha mais ou menos limpa para levar a revolução dos cargos ao quarto mandato seguido – sem que a opinião pública desperte de sua soneca cívica.
Até aqui, tudo bem. O deputado Cândido Vaccarezza (PT-SP), líder do governo na Câmara, defendeu a reintegração do ex-tesoureiro Delúbio ao Partido dos Trabalhadores. Vamos repetir baixinho, para não perturbar o sono dos brasileiros: não foi um militante petista que disse isso em “off”. Foi o líder do governo, de cara limpa (até onde isso é possível), quem declarou publicamente que o lendário Delúbio, apontado pelo Ministério Público como um dos vértices da quadrilha que ordenhou o Estado em prol do PT, merece uma nova encarnação no partido.
“Nenhuma pena é eterna”, disse Vaccarezza. Pode-se questionar o teor filosófico da afirmação, mas pelo menos uma certeza cristalina ela traz: o pessoal perdeu completamente o medo da polícia.
É compreensível. Dos 40 indiciados por aquela fantástica operação de empréstimos fictícios, que faziam dinheiro público brotar na boca do caixa privado para os parlamentares fiéis, ninguém foi punido pela Justiça. Nem será. Passados mais de cinco anos, o escândalo já foi mais que engolido pela opinião pública. Ao lado dela, o Supremo Tribunal Federal aninhou-se na mesma soneca, para não fazer barulho no momento em que a candidata de José Dirceu chegava para a troca de guarda no palácio.
Com Dilma lá, o medo da polícia sumiu de vez. E o líder Vaccarezza pôde soltar seu brado definitivo sobre os mensaleiros: “Todos eles já pagaram um preço maior do que seus pecados”.
Quem imaginar que uma declaração dessas é a apoteose da cara de pau está redondamente enganado. A coisa é científica. O líder petista joga o disparate no ar para sondar o terreno. Não havendo reações significativas, ele fotografa o sismógrafo parado no zero e emite o sinal para os companheiros: todo mundo dormindo, caminho livre.
A ressurreição do “nosso Delúbio” (como dizia Luiz Inácio) é só um detalhe do projeto. O abraço apertado de Erenice Guerra na presidenta, em plena posse, foi parte da mesma experiência científica altamente bem-sucedida. O laudo é conclusivo: o povo não está nem aí para o tráfico de influência. E lá vem mais um teste de laboratório ao vivo: José Sarney, flagrado com o filho e o também lendário Agaciel Maia usando o parlamento para empregar seus simpatizantes, já foi lançado para presidir novamente o Senado.
Tudo normal. Na ausência de Nelson Rodrigues e da polícia, não há mesmo mais nada a temer.
Publicado na revista “Época”
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