“Eu quero mesmo é ser adotado”. Essa foi a frase de despedida de um amigo muito amado. Eu sabia do seu drama. Envolvera-se com uma mulher que depois de amá-lo, maltratava-o; tudo agravado por um filho adotivo mentalmente perturbado com o qual não se preocupou. A culpa era dele, era dela, era do mundo em que vivemos. Todos estamos envolvidos e alienados — ou você leitor, tem alguma dúvida? — em tudo. Enxergamos com microscópio o que ocorre com o irmão e, no entanto, somos impotentes para mudar o seu malogrado destino.
Desta tragédia anunciada — aliás, o que não é anunciado neste nosso mundo onde o fim é a única certeza, como elaborou Garcia Marques num livro extraordinário? — ficou na minha mente a adoção como projeto.
Ser adotado é um gigantesco anseio que todos temos, mas poucos manifestam. Num nível profundo, a adoção como o internamento, a filiação a um partido, a crença absoluta ou a prisão domiciliar — esse privilégio nacional — trás o benefício de não se preocupar mais com a dureza de tomar decisões. Sobretudo da decisão paradoxal de não-decidir a qual só pode ser assumida de modo legitimo quando se decide.
Regimes escravocratas têm como base a adoção involuntária definitiva de uma pessoa (o escravo) por outra (o senhor) a qual incorporava o adotado na sua pessoa jurídica, tirando-lhe a representatividade e fazendo cair sobre ela todos os deveres, sobretudo o de trabalhar — esse ato que, no Brasil, até hoje promove alergias e designa inferiores.
Uma adoção completa, arrasa a liberdade e a responsabilidade como é o caso dos menores. Uma criança, embora tendo direitos inalienáveis, não decide por si mesma e nem deve fazê-lo sob pena de irresponsabilidade dos pais.
Lembro-me de um caso assombroso. Numa família de seis filhos (duas meninas e quatro meninos) ocorreu uma manifestação. Os filhos queriam alterar a rotina da casa por meio do voto direto e secreto. Do lado dos filhos, autodenominados de “povo” e “manifestantes” estavam os amigos de colégio e um jovem tio; do lado dos pais, lidos como “opressores” e “autoridades”, haviam avós dilacerados e pelo menos um juiz de direito aposentado, amigo da casa. A proposta dos rebentos era de tomar sorvete todo dia; dormir depois da meia-noite da noite e, eis o ponto chave, terem o direito de beber e fumar tanto quanto o pai. Surgiu também a proposta de jamais tomar banho frio e um dos meninos anonimamente propôs a prerrogativa de comer a atraente empregada o que deixou o pai furioso.
A eleição, deu ganho de causa aos filhos por seis a dois! Um embargo e uma “questão de ordem” impediu empregada de votar. Uma das filhas, cuja bandeira era chegar em casa mais tarde do que os irmãos, argumentou que o direito ao voto só caberia aos membros da família. O filho caçula, surfista e louco pela doméstica e pelo direito de fumar baseados a seu bel-prezar, invocou um outro embargo preliminar; o qual foi seguindo de um outro embargo e, no final, a mãe queria anular o processo reclamando da forma da urna.
A discussão evoluiu para o berro e o pai num surto de impaciência e — reza o caso — de bom-senso, pegou um cinturão e acabou com que chamou de “palhaçada parlamentar familística” porque voto não era para a casa. “Quando vocês puderem se sustentar, seus putinhos — disse ele furibundo — vocês vão poder fumar e beber à vontade!”
O caso joga luz no valor das rotinas. Se temos polaridades (homens e mulheres, velhos e jovens, crianças e adultos, animais e humanos, etc…) temos também um conjunto de intermediários. A dificuldade de decidir surge precisamente porque as diferenças promovem múltiplas perspectivas. Ademais, há dentro de cada um de nós, um infante querendo votar e um adulto cansado de fazê-lo.
O problema não é bem querer ser adotado, é impedir a adoção. Pois todos nós somos inescapavelmente adotados por alguma entidade — uma língua, uma ideologia, um momento histórico e uma coletividade, por exemplo. É impossível escapar da adoção porque ninguém entra neste teatro de horrores escolhendo livremente todos os seus papéis. Do mesmo modo, é impossível gozar da liberdade absoluta a qual, como advertia a antropóloga Margaret Mead, torna inviável um mundo sem rotinas. De fato, um sistema no qual todas as decisões seriam tomadas em assembleias e manifestações, seria imobilizado por suas próprias regras. Uma consciência absoluta leva a paralisia. Como disse muito bem o antropólogo Roberto Kant de Lima, quando um pequeno grupo impede uma multidão de ir e vir, o direito de manifestação tem que se entender com o direito de ir e vir o qual, por sua vez, também tem que se haver com outros direitos… O que não é fácil num país no qual o poderosos sempre tomam as decisões.
Na minha opinião (que não resolve nada) seria preciso retomar aquele bom senso primordial do dar, receber e retribuir que Marcel Mauss ensinou e que nós, ignorantes mas estufados na nossa santa arrogância individualista, esquecemos.
Fonte: O Estado de S. Paulo, 11/09/2013
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