Muita água ainda vai rolar debaixo da ponte até que se possa chegar a algum consenso razoável sobre as vantagens e as desvantagens da aplicação no Brasil dos sistemas de “cotas”, pelos quais determinados cidadãos recebem determinadas prioridades para obter acesso a determinados bens públicos – conforme a cor de sua pele, por exemplo, têm direito a tantas ou quantas vagas nas universidades ou num caso mais recente, em concursos para entrar no Itamaraty. Na teoria, supõe-se que isso sirva para melhorar com mais rapidez a vida de muitos brasileiros que hoje competem em desvantagem na maratona social e precisam, portanto, de uma compensação. Pode estar cerro, pode não estar; o tempo dirá. Enquanto isso, prospera com vigor cada vez maior outro sistema de coras, muito mais importante para o bem-estar de todos, seja qual for a sua cor, e sobre o qual não existe dúvida nenhuma: é uma completa calamidade. Trata-se da distribuição de cargos essenciais no serviço público federal através de cálculos aritméticos que dão a partidos ligados ao governo, grupos políticos regionais, gangues partidárias e bandos assemelhados o direito a receber um número X ou Y de postos na administração, que preenchem com nomes de sua escolha – e sem a mais remota preocupação em saber se os nomeados têm ou não alguma capacidade profissional para exercer as funções que receberam. Há perfeito consenso de que a existência dessas cotas torna praticamente impossível o bom funcionamento de qualquer governo. Há igual consenso, ao mesmo tempo de que “no Brasil é assim”. A única modificação esperada é que, a cada troca de comando, a coisa fique ainda pior.
A atual transição em Brasília marca um novo patamar nesse processo. Cargos com impacto direto na vida dos cidadãos, e que obviamente exigem de seus ocupantes experiência, talento e aptidão profissional para ser exercidos com um mínimo de eficácia, são entregues “de porteira fechada” a esta ou àquela turminha. Não passa pela cabeça de ninguém, nem de longe, reivindicar qualquer cargo por ter ideias sobre como tocá-lo melhor, ou por ter algum projeto em relação a ele; exige-se o lugar simplesmente porque ele faz parte “da cota” de um grupo “aliado”. Discute-se abertamente o valor do posto, sem nenhuma tentativa de disfarce, pelo volume de verbas a seu dispor; tal posição, com verba de 20 bilhões de reais no orçamento deste ano, vale duas vagas com verbas de 10 bilhões cada uma. São debatidos em plena luz do dia e em português claro, igualmente, os atrativos mais importantes dos cargos em oferta no livre mercado de Brasília – quais os que dão as maiores oportunidades de nomear parentes e aliados, quais os que são mais promissores para a transação de negócios, quais são os que permitem roubar mais. A cena altura, discutiu-se a entrega de determinado posto diretamente a um empreiteiro de obras públicas. Em outro grande momento, falou-se na “cota” da presidente Dilma Rousseff – como se ela, após ser eleita com mais de 55 milhões de votos, tivesse direito a um número limitado de nomeações em seu próprio governo.
Parece de notável desimportância, nessas condições, ficar quebrando a cabeça para determinar se o novo ministério é melhor, igual ou pior que o anterior. É, sem dúvida, uma das equipes mais cinzentas que um chefe de estado brasileiro já conseguiu reunir em tomo de si, não ajudando em nada, é claro. O fato de que um terço dos ministros foi herdado do governo anterior – provavelmente, a “cota” do ex-presidente da República. O ministro da Previdência Social diz que não entende nada de previdência social. A ministra da Cultura diz que não entende nada de direitos autorais. A primeira realização da ministra da Pesca (e não podemos esquecer, da “Aquicultura”) foi trocar a placa de seu carro oficial; onde estava escrito “ministro” agora já se pode ler “ministra”. Mas e daí? Seria pura ilusão acreditar que com nomes diferentes o governo Dilma poderia ter um desempenho muito melhor, quando centenas de cargos que vêm logo abaixo deles, e onde se decidem as realidades do funcionamento de aeroportos, estradas, ambulatórios, escolas e tantas coisas mais, são disputados pelos políticos como se disputam pontos do tráfico no Complexo do Alemão. É motivo de espanto, nessas condições, que se consiga, por exemplo, embarcar e desembarcar alguma coisa nos panos brasileiros, que as aposentadorias sejam pagas em dia ou que a luz acenda quando se liga o interruptor. Pelo jeito, continuará sendo.
Publicado na revista “Veja”
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