Até há alguns anos atrás, as estatísticas sobre o judiciário brasileiro eram escassas e irregulares. Estas se limitavam aos dados de gasto coligidos nas contas públicas, o que não incluía a Justiça estadual; àqueles disponíveis no Banco de Dados do Poder Judiciário (número de magistrados e varas); e às informações levantadas em pesquisas acadêmicas. Isso dificultava uma avaliação mais completa da justiça no Brasil e limitava as pesquisas acadêmicas, pois estas necessitavam começar por uma fase demorada e cara de coleta de dados, etapa que em outras áreas é coberta pelo esforço estatal de produção de estatísticas.
Esse quadro começou a mudar com a multiplicação dos trabalhos acadêmicos, incluindo alguns dedicados a olhar diretamente os processos judiciais, e a criação do Conselho Nacional de Justiça, dentro do qual o Departamento de Pesquisas Judiciárias (DPJ), do qual este articulista participa como membro do seu Conselho Consultivo, passou a produzir anualmente o “Justiça em Números”, com dados, entre outros, de uso de recursos, litigiosidade, produtividade, acesso e participação governamental nas demandas judiciais, para os vários ramos da justiça.
Foi também como resultado de uma parceria do DPJ com o IBGE que o país teve acesso ao final de 2010 à mais completa radiografia da litigiosidade da população brasileira, por meio de um suplemento da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios de 2009. Resumidamente, esse levantamento mostra quem e por que no Brasil se envolveu em conflitos nos cinco anos anteriores, qual a área de conflito, que tipo de solução se buscou e qual se obteve, ou não. O recurso ao judiciário, visto agora pelo lado da demanda, é uma das informações disponíveis, mas não a única. Todas essas informações vêm acompanhadas dos dados usuais das PNADs, como idade, sexo, escolaridade, renda, cor etc.
Uma parceria do DPJ com o IBGE viabilizou a completa radiografia da litigiosidade da população brasileira
Lendo as tabelas publicadas pelo IBGE, os seguintes pontos me chamaram a atenção:
– No todo, 9,4% dos brasileiros com 18 anos ou mais se envolveram em conflitos em 2004-09. Essa proporção cresce com a escolaridade e, portanto, a renda: ela foi de 6,3% para aqueles sem instrução e 14,4% para quem tem superior completo; e de 12,7% para quem tem renda domiciliar per capita de dois salários mínimos ou mais, contra 8,3% para aqueles com rendimento de até um quarto de salário mínimo.
– Também há diferenças entre as unidades da federação e, dentro delas, entre as regiões metropolitanas e o resto do estado. O Rio Grande de Norte apresenta a maior frequência de conflitos (13,9%), seguido do Acre (12,8%), Distrito Federal (12,7%) e Rio Grande do Sul (12,6%). É, porém, na região metropolitana de Salvador que a taxa de conflito é mais alta: 14,2%. Combinando instrução e geografia, tem-se que a frequência de conflitos para indivíduos com superior completo em Salvador (21,6%) é quase cinco vezes a observada para pessoas sem instrução em Rondônia (4,4%).
– As mulheres (8,7%) se envolvem menos em conflitos que os homens (10,1%), os brasileiros de cor ou raça preta (11,1%) têm mais conflitos que a média, e no meio urbano (10,1%) os conflitos têm duas vezes a frequência do meio rural (5,2%). É na faixa de 40 a 49 anos que os conflitos são mais frequentes (11,3%).
– As principais áreas de conflito são a trabalhista (23,3%), de família (22%) e criminal (12,6%), mas há uma proporção elevada que envolve os serviços de água, luz ou telefone (9,7%). Para quem não tem instrução, a principal área de conflito é a previdenciária, para quem tem superior completo, a trabalhista, seguida de serviços de água, luz e telefone.
– Dos que se envolveram em conflito, 7,3% não buscaram solução, 57,8% foram à justiça e 12,4% aos juizados especiais, mostrando a importância deste canal alternativo de solução de conflitos. Pareceu-me interessante, também, que em 6,6% dos casos se buscou uma solução na polícia e em 3,9% deles nos Procons. Dos que não buscaram uma solução na justiça ou nos juizados especiais, 27,6% não o fizeram porque resolveram o problema por meio de mediação ou conciliação, 15,9% porque demoraria muito, 6,6% porque não acreditam na justiça, 6,0% porque custaria muito caro e 4,4% por medo da outra parte.
– Em 48% dos casos, o conflito já tivera solução quando da realização da PNAD, a qual em 71% dos casos se deu em até um ano. Estas proporções são mais altas no Centro-Oeste e mais baixas no Sul. A justiça (41,2%) e os juizados especiais (12,1%) foram os meios mais comuns de resolução de conflito. Das pessoas que buscaram solução nos Procons, em 69% dos casos houve solução, contra 56% nos juizados especiais e 44% na justiça. A área em que mais se espera por uma solução é, de longe, a de benefícios do INSS ou previdência: houve solução em apenas 32,6% dos casos e em apenas 46% destes em até um ano.
Trata-se, portanto, de um rico banco de (micro-)dados sobre a litigiosidade e a solução de conflitos pelas pessoas (em anteposição a empresas e o setor público) no Brasil. Surpreendentemente, recebeu pouca atenção da mídia e da academia.
Fonte: Valor Econômico, 04/02/2011
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