O dólar poderia dizer, parafraseando Mark Twain, que os anúncios de sua morte foram bastante exagerados. Não faltam pessoas alertando sobre o iminente “crash” da moeda americana. Como ocorre em quase toda profecia alarmista, existem bons argumentos para justificá-la. Mas, em tempos de crise, não tem jeito: é para o dólar que todos correm.
Essa fuga para a “qualidade” é, na verdade, uma fuga para a liquidez. Afinal, ninguém pode dizer que a economia americana apresenta boa saúde atualmente. O rombo fiscal segue em patamares elevados e as disputas políticas dificultam acordos razoáveis para reverter a situação. Além disso, o Fed continua adotando medidas expansionistas que tendem a desvalorizar o dólar.
Acontece que reserva de valor é um conceito relativo. O dólar não é bonito, mas ainda se sobressai nesse concurso de feiura internacional. É verdade que a economia americana vem perdendo espaço no mundo. Também é verdade que as medidas do Fed colocam o futuro da moeda em xeque. Mas, em contrapartida, não existem substitutos com as características necessárias para rivalizar com o dólar no momento.
E quais são essas características? Primeiro, o país que emite a moeda deve ser grande, rico e ter perspectiva de crescimento econômico à frente. Além disso, é importante ter um razoável império da lei, para proteger os investidores de confiscos arbitrários. Um poderio militar ajuda. Quando a Inglaterra perdeu seu status de grande potência, a libra iniciou uma tendência estrutural de queda. E, talvez um dos pontos mais importantes, faz-se necessário um desenvolvido sistema bancário, com farta liquidez nos mercados.
Quando levamos isso em conta, fica mais fácil compreender porque o dólar não deve ser “destronado” em breve. Quem seria o candidato a substituí-lo? O euro é uma moeda sem Estado, que depende do consenso entre 17 países, sendo que todos dependem da solidez da Alemanha, cujos cidadãos terão que aceitar bancar a conta dos demais. A complicação política é enorme na região, justamente porque o euro é um projeto de integração artificial entre países que apresentam poucas afinidades ideológicas.
Já o remimbi chinês é uma moeda com muito Estado. A China parece a candidata natural para assumir a hegemonia monetária. Mas existem sérios problemas estruturais, a começar pelo pouco desenvolvido sistema bancário. A China usa seus bancos estatais para canalizar investimentos com viés político, mirando a criação de empregos num país em constante tensão social. Nada indica que o governo pretende abrir mão deste controle no curto prazo, e isso impede o livre funcionamento do sistema monetário.
O governo tem deixado clara sua intenção de internacionalizar o remimbi, pois percebe o risco de ser refém do dólar. Mas tudo na China é gradual, e este caso não será diferente. Seria um tiro no pé vender seus trilhões de dólares rapidamente. Além disso, não podemos esquecer que o país ainda vive sob uma ditadura. Os investidores não vão migrar em peso para o remimbi, pois seria impossível não perder o sono. A moeda chinesa tem tudo para ganhar relevância com o tempo, mas ainda é cedo para ser uma alternativa concreta ao dólar.
A outra grande economia mundial, a japonesa, encontra-se em crise há duas décadas, e não há luz no fim do túnel. Troca-se de primeiro-ministro com frequência, as reformas necessárias não andam, e o endividamento público passa de 200% do PIB. O iene acaba se valorizando em crises, pois os japoneses poupadores decidem repatriar seus investimentos mundo afora. Mas a moeda vem perdendo representatividade, e isso não deve mudar.
Restam moedas de países menores, que não oferecem liquidez suficiente para todos os investidores. Canadá, Austrália e Brasil são exemplos claros. O franco suíço, visto como um porto seguro, sofreu bastante após seu banco central decidir intervir no mercado, fixando seu teto em relação ao euro. O ouro é sempre um candidato em tempos de crise, mas a recente queda abrupta mostra como a porta de saída é apertada quando grandes players resolvem vendê-lo para levantar dólares.
Em suma, pode ser que o mundo caminhe para uma maior diversidade de moedas como reserva de valor, derrubando o “exorbitante privilégio” do dólar. Mas não se enganem: quando a crise aperta, há um único refúgio, e este ainda é o dólar. Quem está pessimista com o desenrolar desta crise deve se lembrar da velha máxima de mercado: “cash is king”. E o rei ainda é o dólar, ao menos até o Fed resolver apelar para um terceiro “quantitative easing”…
Fonte: O Estado de S. Paulo, 30/09/2011
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