O real se tornou a moeda nacional há 19 anos, quando a inflação beirava 50% mensais, mas não havia ninguém nas ruas. Durante os 15 anos anteriores, quando a inflação acumulou 20.759.903.275.651% (vinte trilhões e troco), o brasileiro produziu grandes manifestações em raras ocasiões: para pedir eleições diretas, e depois para derrubar o primeiro presidente que elegeu nesse formato. A hiperinflação, a maior desgraça econômica que o país já viveu (exceto pela escravidão), não chegou a produzir mais que episódios isolados, seu efeito mais marcante e paradoxal foi o torpor.
Como foi possível que uma monstruosidade econômica desta grandeza não pusesse o país submerso em protestos e passeatas?
Talvez nunca seja possível responder com precisão. A hiperinflação foi um fenômeno gigantesco e incompreensível, inclusive por que faltava clareza quanto ao autor. Não havia uma causa, pois se dizia que a inflação de hoje era a de ontem, portanto, de “natureza inercial”, e não tínhamos responsável. Contra quem protestar?
Na verdade, a própria inflação era o protesto, pois a experiência de quem viveu aqueles dias sombrios era sempre a do repasse, ou de “correr atrás” para recuperar poder de compra que se derretia. O custo de vida se elevava 1% ou 2% ao dia, era preciso passar adiante os aumentos, pois era um Tsunami, uma reação em cadeia, um conflito distributivo que nos impunha um comportamento nefasto, pois buscava-se “correr à frente” do processo, e assim nos tornávamos cúmplices do vício, ainda que em legítima defesa.
Conforme observou Elias Canetti, numa passagem famosa do livro “Massa e Poder”, a hiperinflação pode ser tomada como “um sabá de desvalorização no qual homens e unidade monetária confundem-se da maneira mais estranha. Um representa o outro; o homem sente-se tão mal quanto o dinheiro, que segue cada vez pior; juntos, todos se encontram à mercê desse dinheiro ruim e, juntos, sentem-se igualmente desprovidos de valor”.
A hiperinflação era, portanto, um fenômeno depressivo, um exercício cotidiano de queimar a própria bandeira, uma destruição de valores de forma ampla, o suicídio de um símbolo nacional, uma ferida ética. O sentimento de culpa talvez explique, em parte ao menos, o desinteresse na busca de responsáveis. A vilania jamais era associada aos líderes políticos que ordenaram a gastança, as pirâmides e estádios, as transposições, as emendas orçamentárias e a generosidade nos bancos oficiais. Nenhum desses farsantes jamais defendeu a inflação diretamente: apenas atacavam quem queria combater a inflação a sério, os miseráveis neoliberais ortodoxos a serviço do FMI e da globalização.
A imprensa jamais conseguiu produzir um rosto, um vilão, quando muito um ministro que naufragou com um plano de estabilização, e o Ministério Público nunca conseguiu processar ninguém por produzir inflação. Nenhuma CPI funcionou com esses termos de referência. Foi o crime perfeito.
Pois agora, passados 19 anos, ao invés de festejar a monotonia da estabilidade, a ocasião serve para o registro que muitos desses personagens estão de volta. Parece novamente recomposta a mesma coalizão inflacionária da “Nova República”, movida pelo “tudo pelo social”, ou pela promessa de inclusão social, ou de conquistas, a qualquer custo, e também por projetos megalomaníacos e pela descrença em limites fiscais, tudo isso resultando em um “hiperinflacionamento de desejos” no orçamento ou nos bancos oficiais, bem além das possibilidades dadas pela disposição da sociedade em pagar impostos.
Esta é a matriz da hiperinflação, cujo desenrolar invariavelmente compreende a descoberta da capacidade de administrar “politicamente” a realização de desejos incorporando seletivamente grupos beneficiados na coalizão governista numa espécie de clientelismo de massa. Em seguida, para que o processo ganhe escala, é preciso capturar o Banco Central, a fim de adquirir o controle sobre o crédito e sobre a fabricação de papel pintado, mágica que pode ser compartilhada com os Estados, cada qual com o seu banco emissor e sem limites quanto à capacidade de se endividar.
Agora, todavia, esses canais monetários e creditícios estão bloqueados, embora com alguns vazamentos. A inconsistência entre o inflacionismo da política fiscal e as barreiras institucionais à inflação, notadamente na forma das metas de inflação e dos impedimentos ao endividamento dos Estados (Lei de Responsabilidade Fiscal e outros acordos de reestruturação de dívidas), nunca foi tão aguda, parecendo configurar um quadro de inflação reprimida. O sistema político se vê pressionado a fazer escolhas, as tensões vão se multiplicando, e também o intervencionismo, pois o Estado tenciona ser maior que a Sociedade.
Diante dessas limitações, o governo precisa racionar a realização dos desejos que inflou, e para tanto parece ter criado uma espécie de feira de favorecimentos e seletividades, fiscais e regulatórias, guiadas por idiossincrasias, amizades, preferências e por clientelismo. A Casa prevalece sobre a Rua, como diria Roberto da Matta, não há impessoalidade nos atos da administração, tudo tem o seu destinatário, aos amigos tudo, aos outros a horizontalidade do mercado e a hostilidade dos reguladores. Instala-se o primado da malandragem, o investimento em lobby toma o lugar daqueles que se destinam à produção e à competitividade, o país do futebol se torna propriedade dos cartolas e a Rua se levanta.
Soa familiar? Não é parecido com as reclamações que se ouve nas ruas?
É surpreendente e alvissareiro que a sociedade exiba uma capacidade antes inexistente de perceber a vilania dos velhos mecanismos de socialização dos custos de estádios de futebol ou do apoio aos “campeões nacionais”. A imprensa não tem dificuldade em identificar os enredos e beneficiários, bem como as fórmulas de ocultação e os truques contábeis e manipulações. A irritação se torna cotidiana e crescente. Ninguém quer pagar as contas que não lhe pertencem, as escolhas do governo são equivocadas e provocam indignação: se há dinheiro para o Itaquerão e para o trem-bala, como as escolas, hospitais e ônibus podem ser tão ruins?
O “sistema político” tem muitos defeitos, mas o problema aqui tem muito mais que ver com a liderança e há uma eleição logo à frente. No mundo plano da globalização e das redes sociais, seria normal que a aversão a esse pseudo-capitalismo de quadrilhas trouxesse para o centro da política o desejo de horizontalidade, transparência, responsabilidade fiscal, probidade, meritocracia e impessoalidade nas regras do jogo econômico. Era disso que se tratava o Plano Real, sobretudo no seu capítulo sobre reformas. Mas o que estamos vendo nos últimos anos é muito diferente. É compreensível a irritação dessa maioria silenciosa com a epidemia de “seletividade”, privilégio e compadrio, que se sabe serem o berço da corrupção. Surpreendente mesmo não é o protesto e seus temas, mas o timing e a faísca que o determinou.
Fonte: O Estado de S. Paulo, 30/06/2013
Lúcido! brilhante…
Formula de ocultação esta acabando,já acabou, tem o plebiscito, mas não vamos engolir. que situação que chegamos, agora gostaria da sua previsão pro ano de 2015. eu que não entendo de economia, estou com pé atras.